Acabo de despertar de um pesadelo, de um suposto tombamento do céu; (meu Deus, uff, que fique cá entre nós). A Cláudia brada, em pânico grave, - que foi, Magaia?, tornou a agitar-me, impetuosamente, a acender o xiphefu. Ainda respirava com grossura, fora intenso o aperto no coração e, a transpiração era de ignorar ternuras. - Apague a luz, amor... Basta-me o escuro; não quero conversar, faça-me massagem, estou nervoso; mas podes deixar, se quiseres durma, foi só susto, em bocado. A Cláudia não demorou, dormiu. Nunca fui de medos, sempre mantive essa virilidade; os meus filhos me chamam, seja pelo instinto, pelo pesadelo, mas me chamam; fugi da Beira em 1999, quando a minha empresa faliu, os nervos estavam na flor da idade e da pele: filhos por sustentar, mulher paraplégica por cuidar, tudo seguiu um único rumo para acabar comigo; na verdade, tornei-me valente covarde, pela dor, talvez. Pois, a Laurinda, a minha ex mulher, aliás, nem chegara de me separar, tombara do décimo terceiro andar no prédio da clínica onde trabalhava, ela que sempre ajudava lá em casa quando a minha empresa começou a descaminhar, nos momentos mais difíceis, estivera comigo para me apoiar, mas, no entanto, tudo mudou; caiu do prédio, caiu nossa vida, a fome passou a ser mais presente, as lágrimas das crianças, uma que não falava, o Luís, a outra que não andava, o Hamilton, passaram a ser nosso "matabicho", meia vida, escassa conversa, tudo, debalde.
A Laurinda, desde que falecera fisicamente, abrigava nela um temperamento egoísta, não ouvia ninguém, às vezes desejava quebrar a cadeira de rodas pelas suas próprias mãos, insultava os filhos; fugi por ter sido pouco humano para minha família crendo que ser pai fosse preciso carisma, e a vida de um homem bastasse apenas na cama.
Hoje, pesa-me a alma, o corpo arde tal qual o tamanho inoxidável da morte. Se passam mais de vinte anos, observo-me, os olhos a esculhambar, minhas mãos sem gesto algum, com o pesadelo, com meus dois miúdos nos jornais da praça, procurando pelo pai, um irresponsável, que direi...se a contrição perdera valor, o tempo plantara o ódio, suponho. A Cláudia acordou, estica-se, está com uma tira a cobrir os seios, cabelos desgrenhados, rosto de "reza Maria"; vai à sala, atiro milagrosamente o olhar na parede, no relógio contam cinco horas e trinta e oito minutos, o sono acabou, minha vida findou, os músculos, meu jeito arrogante sumiram com o estrondo do tempo. Minha mulher volta, não diz nada, deita-se e se cobre; divido o meu rosto com as mãos e choro. Preocupo-me pela forma que encarei o passado, sem lei, a alardear postura de um bom homem; os meus filhos já são grandíssimos, imagino, com as caras de uns santozitos, corações que mesmo em dor hospedam humildade.
O Luís, o miúdo mais novo que, aos dois anos e meio, não tinha conseguido soltar metade de uma letra sequer; o Hamilton, aos 5 anos, que sempre gritava: - Pai, assim não vou mais andar?, e eu, a temperar a tristeza pelo sorriso e, de ânimo leve, - amanhã já anda, meu filho; dizia roçando na nuca do miúdo. A Laurinda e eu, no caldeirão de Xiveve, disputando beijos, e a simularmos qualquer entendimento pelo futebol nos jogos do Clube Ferroviário da Beira, fomos felizes. Saíamos do campo aos abraços, sorrisos de esconder o céu; chegávamos a casa a discutir mais técnicas dos jogadores que nossa própria vida. Ao abrirmos a porta, os nossos especiais filhos com os braços abertos(um pelas palavras, outro pelo sorriso e olhar) chamavam-mo: Pai. Não é possível que a Laurinda não tenha resistido, era forte, eu me juro, mulher de luz, morrer assim sem explicação?! Pode até em algum momento, esses assaltantes que especula-se que tenham invadido a casa e empurrado ela, mas até morrer, não. Ela provou com fé quando lugubremente sentiu as alturas sem asas em sua mente, viu, Magaia, só morreu o corpo, todavia nada a tirou força. Saí para beber água; a Cláudia, quase a atravessar o aro da porta, me pergunta para onde vou porque hoje é sábado, diz que é melhor ficar em casa, é um século difícil, há estranha doença que chamam-na covid-19, é muito perigosa, está a acabar o mundo inteiro; contudo, que só vou a sala beber água não quer ouvir, Santos!
Há pessoas fortes neste universo, ouvi por aí que até o vovó Nhazilo carregou covid-19 pelas costas e não morreu, é da família, o velho não está para brincadeira nenhuma, comentei e saí. Estou em Maputo, aqui na zona desconhecida da Machava, Luís e o Hamilton, meus filhos, longe de mim, graças a Deus, estão vivos, primeiro, o Ciclone Idai que quase varreu toda Beira não os tocou, ainda tenho que agradecer a minha comadre, Rita, mas como, se agora está tudo parado, há pessoas infectadas no país, está-se em distanciamento social, é alto pecado se locomover e, ainda, nem sei se consigo o perdão deles. O Hélder, meu filho, aparece na sala, com um olhar de altercar meus pensamentos, cheio de inocência; sorrio, achego-me, carrego-o no colo, tem dois anos, franzino, clarinho como a Cláudia(mãe), ponho-o no chão, inclino-me, com um rosto sério, de um homem disposto a mudar o rumo das coisas, questiono se ele gostaria de conhecer os seus irmãozitos, o miúdo fugiu dos meus braços sem justificação, sem se ultrapassar um minuto, trazia de mãos dadas, o Timóteo, seu irmão mais velho, teimoso, bipolar; sorrio.
Em minha mente ainda transcorria que o vovó Nhazilo carregou covid-19 pelas costas e não morreu, entretanto, num tom lesto, confesso aos meus filhos que tenho uma outra família, fora; enquanto recebiam com agrado, sobretudo o Timóteo que já sabia um pouco da vida, ouço um copo a quebrar-se, viro, é a Cláudia com as malas feitas, um olhar de lume fixo em meu rosto; - vou embora com os meus filhos, sê mui feliz com a tua família que está na Beira, nunca falou nada, foram mais de vinte anos convivendo com esse segredo?!, ela disse com lágrimas a criar caminhos no seu rosto enquanto abria a porta; nem um segundo coube em minha boca para me explicar.
Luís Nhazilo