Elcídio Bila |
I
Ficar em casa é um dos imperativos que assusta aqueles que não sabem se dar aos outros. Aqueles que têm a cultura de se esconder dentro de si, negando-se exposição ao outrem, de certeza, estão a definhar com esta medida que permite que os viventes do mesmo tecto se conheçam, finalmente, e que partilhem, entre si, os mais profundos sentimentos.
II
Quarentena. Ainda que uma medida pertinente e deveras necessária, ao mesmo tempo, serve de desculpa para aqueles que nunca puderam respeitar o "não" dos seus corações e se punham a ir onde não queriam e ver quem desdenham. Quando o período terminar, talvez, já estarão com voz audível o suficiente para não se prestar a desilusões que nunca conseguiram travar.
III
E não é que há tamanha e desmedida felicidade naqueles que os seus beijos e abraços sempre foram propriedades privadas. O coronavírus, sem retirar o mal que nos-é, só veio legitimar a antipatia e inflamar ainda mais o ego daqueles que celebram o distanciamento e a individualidade corporal.
IV
Que diabo agradável! Pânico à parte. Muita gente está a elevar o seu senso de leitor com esta medida que nos gruda do sofá como se de napas ou tecido nos tratasse. A guerra em ter os melhores títulos sobre à cabeceira, aliado aos melhores filmes e outros bocados de entretenimento faz-me antever um fim de quarentena com golpes certeiros contra a ignorância.
V
A fidelidade - esta variante ausente nos últimos tempos - parece que vai resignar a sua (in)disciplina ou, pelo menos, os infiéis vão deixar os seus apetites vagabundos em descanso total. Espero que na retoma dos golpes marandzistas e ataques jigologistas os alimentadores dessa febre tenham se dado por vencido e tenham feito as pazes com as suas dignidades.
VI
Está claro que a situação passou de preocupante para drástica, senão lamentável e horrivelmente gritante, com o desaparecimento físico do ícone Manu Dibango. Os que tinham um certo distanciamento com o coronavírus e, cruelmente, alimentavam-se de discursos que afastavam os negros do problema e a África desta crise devem ter começado a lavar as mãos a sério e repensado na frase mais famosa do mês: "não saia de casa”.
Juro, não sei o que é mais assustador: se a propagação do coronavírus ou o silêncio dos manos nos passeios da Baixa. É de uma profunda nostalgia circular pelas ruas onde quase todos te chamavam de chefe, boss, patrão e hoje passas invisível e sem poder para fazer charme a um vendedor de LCD. E o pior, a gota de água, é que não tens com quem dividir essa dor, pois não podes sair de casa e nem receber ninguém.
VIII
Os bares, agora sim, de verdade, têm os seus melhores clientes. Se havia quem tivesse dúvida do cliente verdadeiramente assíduo e que tivesse o local como sua casa, agora, definitivamente, o imbróglio está resolvido. Arriscar copos e outros talheres, as cadeiras e mesa de um bar, hoje em dia, é uma declaração vivaz de amor pelo álcool e uma afirmativa desvinculação ao seu lar.
IX
Já está quase no fim esta odisseia, mas, antes de me libertar deste papo, o importante é começar a reaprender cada papo que terei com os que estão amavelmente felizes por me terem distante. Sim, este é um momento de reflexão, para não mais ferirmos quem amamos por nunca escolher as melhores palavras. Que o silêncio, sobretudo do olhar, nos eduque.
X
Nunca pensei, sinceramente, que lavaria tanto nas mãos em minha vida. Há vezes que tenho vontade de entrar num sítio, mas desisto logo que vejo uma bacia e sabão. É que é tanta água durante o dia, por qualquer movimento, que às nossas mãos estão a humilhar o nosso corpo e, sobretudo, o nosso cérebro que anda sempre, mais sempre, sujo.
Elcídio Bila