1.
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O INSTANTE APÓS O BEIJO
(Preito a Mia Couto)
Não me basta o primeiro beijo:
quero o instante após o beijo.
Quero sentir o teu primeiro suspiro
e também o derradeiro.
Quero pousar a boca sobre os teus lábios trémulos,
gentis e hospitaleiros.
Quero conter-te em meus braços, ainda completa,
para colher-te, após o beijo, no soalho, já desfeita.
Deixando-te estarrecida,
com o coração fugaz,
tentando evadir-se do peito,
em busca da fonte daquele deleite.
Levando-te assim a crer em vida em outro planeta;
atarantada como quem viu um OVNI,
um astro, ou algum cometa.
2.
amas-me?
Insegura, indagou-me, contrita, se a amava. Inquieto, ignorava o que lhe vinha à alma, nada sabia sobre o que a perguntava intentava ou a resposta que buscava, mas balbuciei-lhe assertivamente as seguintes palavras:
não haveria amor
não desabrocharia a flor
brilharia o sol despido do costumeiro fulgor
correria inutilmente o rio sem que tivesse mar para desaguar
por-se-ia o sol sem o intento de pela manhã despontar
e não se acharia na mais perfeita fragrância odor
se não te tivesse amor
não seria amor
se tua ausência a dor não despertasse
e pensamentos nostálgicos não perpetuasse
e não viveria se te não amasse
meu ofício é este e não outro senão amar-te
e é por muito amar-te
que te fiz mar e eu, maresia
e, conjurando, jurei que não te deixaria
fiz-me luz na noite escura
o ouvido que te escuta
fiz-me o escudo que te guarda
o lenitivo, jamais a chaga
a fotossíntese da tua alma
3.
voltar no tempo
quisera eu voltar no tempo
conter os ventos
e rever intentos
quem sabe meus erros não fossem imensos
mas às vezes penso que não pensaria como hoje penso
não fossem os incontáveis tropeços
não há sabedoria no erro
mas não há também sabedoria sem erro
o que quero não é voltar no tempo
inútil é uma vida de lamentos
sabedoria há em reter a ira antes de ser vento
4.
às vezes
às vezes as coisas são o que parecem ser
às vezes quem parece mentir mente,
quem parece não sentir não se sente
às vezes desiludimos-nos porque ignoramos o que os sentidos nos dão a ver
as aparências enganam a quem desconsidera que muito do que parece costuma ser
é insensatez julgar que a essência
não se revela na aparência
palavras e actos não são acidentes,
ainda que se possa, por vezes,
falar ou agir inintecionalmente
5.
todo o mundo tem
todo o mundo tem um caso de amor que não viveu
um beijo que muito fantasiou,
imaginou
mas que não experienciou
todo o mundo tem uma dor que não mais desatina,
mas que em tempos angustiou,
alvoroçou e deveras doeu
Todo o mundo tem um amor do qual se apartou e com pesar disse adeus
Todo o mundo tem um amor
do qual se recorda e se consola dizendo
“se não foi, talvez é porque não era para ser”
6.
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Poesia
quando a consternação me visita
recebo-a de bom grado e converto-a em palavras que são retrato d’alma
faço do verbo que era dor verso
e com o com ele converso
poesia é a terapia
para me apartar do ónus da triste sina
a poesia alenta e sara a dor que doendo desatina
a poesia é luz que na treva fulgura,
a poesia alivia
a quem escreve e a quem escuta
7.
A beleza do silêncio
há tanta beleza no silêncio
nos lábios cerrados de quem se cala
ainda que imbuído de pensamentos
(muito se respeita quem respeita a palavra)
é sempre melhor quem se cala para se não exceder
que aquele que muito falta
(por instinto)
ainda que sem nada para dizer
Valério Maúnde
Valério Maúnde, tem 29 anos, é natural de Maputo, licenciado em Ensino de Português com Habilitação em Inglês. É professor de Língua Portuguesa, revisor linguístico, tradutor, intérprete, escritor e poeta.