"Há alguém revoluteando no cemitério".
Denunciei, as aparências de um fulano no nosso sepulcral, à família que por hora se encontrava em redor de asas coradas de chamas.
De modo algum, podia eu omitir aparência do tal fulano naquele lugar sagrado, a prior por que os tempos actuais não são de confiança. Há frequentes sucedidos de práticas obscuras; gente a exumar corpos, ou para tirar proveito de alguns órgãos ou para reciclar o ataúde. Há vezes que o mesmo ataúde enterra mais de dois mortos; ou mortos enterrados mais de uma vez!
Como pode, quer dizer já não há descanso para os mortos, é isso?
As exéquias do Maldade tinha sido a três dias atrás. Um dia que choveu muita lágrima. O velho era querido, decerto, mensurando pelas lágrimas deitadas e pelos soluços desmanchados pelo pátio. É uma verdade, isso dava o ar de uma profunda tristeza, uma verídica perda irreparável. Um velório que ajuntara os demais familiares vindos de longe, os vizinhos e amigos dos filhos. Talvez seja por isso que se diz, a morte é sagrada; é último adeus!
Admirados, seus olhos brilharam chamas de fogo. O pai levantou-se com vulto todo de não lembrar calçar os chinelos, empunhando uma lanterna que incandescia um trémulo jacto pálido pela frente. Era como se a tal faixa pálida abrisse o caminho na escuridão.
Segui-lhe a pressa dos seus passos; talvez o pai pensou no tal fulano a executar tais acontecimentos de agora (a exumar o corpo do avô, para tirar proveito da sua virilidade, por que do ataúde não havia algum ganho, foi feito de ripas do estéril coqueiro derrubado logo nas vésperas da sua morte). Era coqueiro que ele plantara com as suas próprias mãos, ainda em adolescência, obedecendo os conselhos do seu padrasto (um homem deve plantar, nascer e escrever para ser completo) antes de morrer"
Quando chegamos, o tal fulano não havia, tinha desaparecido; tentamos, sem sucesso, vasculhar as pegadas com a faixa de lanterna, mas não havia rasto nenhum, tinha desaparecido inexplicavelmente. Nem um vestígio de presenças alheias por ai, havia. Só nossas próprias pegadas e riscos da vassoirada feita pela manhã.
- É o quê que era?
Correu a saber a anciã, ao invés de perguntar "quem era", aos nos ver voltar sem o fulano intruso.
- Era nada que viu... loucura dele, apenas.
Retrucou o pai, acusando-me de visões errôneas.
Mas ver algo, eu vira, decerto. Era um vulto encanecido rodando no debaixo da mangueira onde semeamos o avô Maldade. Agora, em meio de tudo aquilo, o inexplicável desaparecimento, a minha visão de há pouco tempo, não tinha algum crédito.
Decorrido algum tempo, a dita aparência havia-me intrigado o bastante, que deveria ter sido aquilo sem vestígios! Um anjo? Sabe se lá o que era, ou melhor “quem era”. Essa meia dúvida assaltava-me a consciência. Saí pelas traseiras da noite; saquei o pirolito pela boca do ziper, reguei a uma distância razoável de não me salpicar nas pernas. Lancei os olhos para o lá da mangueira "inacreditável" falei para comigo mesmo; o fulano estava lá na inércia. Dei marcha à ré, trémulo, os pés a falhar nos passos. Não queria era ser agarrado pelas costas. Após ganhar uma boa distância, dei uma volta e desatei a correr para a cozinha, quase a me esbarrava no limiar da porta. O pavor alfinetava-me o corpo todo.
"Esse alguém voltou outra vez la"
Soprei o anúncio, a respiração vibrante escapando-me pela boca.
"O quê?"
Explodiram em uníssono, amarrotando os semblantes. Ninguém me acredita no que digo. O bastante da família que ficara para consolar-nos pensou eu estive a me malucar aos poucos de um instante para outro.
O pai balançou a cabeça como se a analisar a lógica das minhas denúncias. Por fim anuiu com um nó de nervo "vamos lá me mostrar tal coisa da tua cabeça". Desta vez, sem a lanterna, fomos às escondidas, acobertos pela noite, calculando com minúcia onde pousar os pés para não provocar algum farfalhar, pelo arrastar dos chinelos e levantar suspeitas (sob o risco de alvoroçar o tal fulano das minhas visões).
E lá está ele (o dito fulano que em instantes anteriores desaparecera subitamente, sem deixar rastos) parado ante a tumba do avô Maldade, trajado a branco. Talvez foi pelo susto da luz que se escondeu de estar presente, na primeira vez.
Calados nós os dois, contemplamos o intruso, a olho fino, a mim se parecia bastante com avô Maldade, corpo rígido, quase dobrado como se carregasse canga no pescoço. Àquela visão, só faltava a bengala com a qual avô Maldade suportava o cansaço da idade. O pai nem se precipitou a interagir com o aparecido intruso; olhou minucioso por instantes e assim no meio a nada como se sentisse o picar dos nossos olhares, o tal fulano extinguiu-se no meio a escuridão. Fiquei assim esbugalhado diante daquele inédito.
A tempo que ia cuspir uma interrogação que me irrompia no pensamento, o pai interrompeu-me nesse imediato com o abraço nos ombros a recolher de regresso, no gesto de quem percebera do sucedido, lançando advertência:
- Não olhes para atrás, nunca!
E para não dizer meia verdade, a mim não havia outra razão de explicação, eram aparências do avô Maldade!
Por Alerto Bia