O solstício do Mutsedzeleki


O solstício do Mutsedzeleki
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Sobre os seus ombros, despencavam-se os fragmentos da estrela-mar doando ao universo alguns lampejos para mostrar a compaixão que o dono da existência tem para com a criatura. Na faina, Mutsedzeleki desgastava algumas gotículas da existência que lhe restavam na vestimenta da alma, desvirginava as rochas que ocultam ganâncias humanas. O vermelho dos seus olhos revelava a paixão que tinha pela impurificação dos pulmões, o cigarro, sempre suspenso na ponta dos beiços namoriscando suas paixões juvenis; ocupar uma porção de terra lá para as geografias em que a impurificação dos órgãos respiratórios é legal, Jamaicas, Colombias entre outros lugares que fascinam as chaminés ambulantes. Infelizmente, o destino não quisera lhe direcionar aos caminhos da liberdade mental, preferiu aprisionar su’alma nessas terras em que a alva morre no poente, onde os sonhos fazem sentido no repouso solar.
Dizem que no pretérito, Mutsedzeleki teria poluído com seus calçados piratas do Xipamanine algumas ruas da terra da raça ariana, mas as saudades dos Svikwembu da sua casa lhe teriam feito abnegar-se do conforto das europas. De lá, só conseguiu regressar com a perna direita à metade e com algumas estórias para entreter sua malta do “senta-baxo”.
- Aquela terra não foi feita para meus pulmões.
Com sua voz azedada pelos líquidos miraculosos dos “senta-baxo”, sempre repetia mecanicamente essa fala quando lhe perguntavam sobre o seu precoce regresso de Djermani.


- Se tivesse ficado, quem ia vos contar estórias de lá?!
Sempre indagava com o peito quase lhe afagando o queixo como os patos quando estão em marcha. Narrava suas peripécias das europas como se fosse um herói das bandas desenhadas e como se fosse o único a cruzar os caminhos do n’walungu rumo ao velho continente.
- Não nos mente tu! O facto de nunca termos saído daqui, não quer dizer que não sabemos nada dos outros mundos. – Afirmou Maculuve encarando o ex-viajante do Djermani.
- Um homem da minha idade não mente… - Pausou a fala para humedecer com a aguardente as palavras que estavam por vir. – Apenas é incompreendido… é verdade, perdi a metade da minha perna lutando com tubarões…
- Quantos anos tinhas quando perdeste a perna?! – A indagação e curiosidade saltaram da boca de um mancebo dos seus um quarto de um século.
- O mais prudente seria me perguntar quantas malangas e wuxikas já vivi, e quantos awuxenis e awupelenis pretendo viver… o que te dizem as minhas barbas? – Afagou o queixo.
Os presentes naquela roda do “senta-baxo” entreolharam-se, com a incompreensão expositada nos seus semblantes fermentados pelo wuputsu. O riridor do ex-viajante do Djermani foi ligado, e gargalhadas soavam como um motor engripado do Toyota Hilux.
- Do que te ris velho?
- Velho é teu pai! – Azedou a voz. – Eu sou vosso companheiro ou chamem-me Zaqueu Mutsedzeleki, para agradar a alma da minha mãe que repousa os dissabores desta vida no Lhanguene… ela sempre me chamava de Leki quando estávamos prestes a tomar refeições, mas não vos dou tal intimidade para não acordar ciúmes mortos da minha mãe, que Deus a tenha! – Fez um sinal de cruz e beijou os dedos indicador e polegar da sua mão direita. – Onde estávamos… ahhh! A idade que tinha… era mais velho que minhas barbas e mais novo que o mundo…

- Por quê tanto mistério para dizer a idade que tinhas, será que ti esqueceste da tua idade? – Perguntou Maculuve num tom de voz sarcástico.
Gargalhadas miúdas ganharam vida naquela roda despertando curiosidades para os andantes daquela rua da fabriqueta do wuputsu.
- Não há nenhum mistério, diferente das mulheres que suas idades são segredos… a idade de um homem é revelada pela quantidade da sua barba…  - Foi interrompido.
- Assim queres dizer que Maculuve tem três anos. – Afirmou o mancebo embrenhado pelos sorrisos fermentados pelo wuputsu.
- Mais respeito, miúdo. – A cólera apoderou-se de Maculuve. – É por causa disso que não gosto de partilhar a roda com miúdos.
- Relaxe Maculuve… não é que o miúdo tem razão. – Afirmou contando mentalmente os três fios de cabelo no queixo de Maculuve.

- Não desviemos a conversa, que idade tinhas quando te metadaram a perna?
- Vejo que estão ávidos para desembrulhar o meu passado.
Afirmou sacudindo a letargia que começava a formigar-lhe os membros inferiores, levantou-se do tronco do canhoeiro que lhe servia de assento, dirigiu-se aos lavabos e de lá rumou para sua cabana solitária sem se despedir do seu bando. Esperaram-lhe por eternidades, porém desistiram, pois, já sabiam que aquela era a qualidade distorcida do velho, sempre que a aguardente começava a lhe desalinhar os miolos, desvanecia como a poeira num dia chuvoso.
- Esse velho sabe deixar as nossas mentes tesas… e sempre com a mesma estratégia, nos envolver e nos desejar desejosos. Se fosse uma mulher, com certeza seria uma meretriz à altura. – Afirmou Maculuve desiludido.
O sol apontava meio-dia e algumas migalhas, quando Zaqueu desassociou as veias do cadeado que bloqueava o portal da sua cabana. Entrou no casulo embalado pela surdina silenciosa do vento, o que lhe deixou incomodado, normalmente era recepcionado pelos berros da sua falecida mãe.
- Hoje não vais me bonguelar?
O silêncio pousou nos seus ouvidos como uma borboleta que namorisca uma flor.
- Vais me deixar sozinho ou vieste me levar?
Ouviu-se um estrondo, a areia desadormeceu o pó que repousava as dores do mundo quando Zaqueu caiu. Um sorriso encantador capaz de purificar as tristezas do cosmo imprimiu-se no rosto do velho, e os seus olhos reluziram intensamente como os faróis de um automóvel no escuro.
- A vantagem de ter minha idade… - Tossiu para recuperar o fôlego. – É que o álcool nos serve de anestesia para amolgar as dores da vida e ignorar as vozes que nos incomodam quando estamos lúcidos.
Voltou a estampar aquele sorriso encantador, e o sorriso estendeu-se para seus olhos. Dormiu eternamente de olhos abertos, pois quando seu corpo beijou o chão, sua cabeça almofadou-se numa pedra que verteu o líquido viscoso do seu órgão cefálico.

Por Arnaldo Tembe - In “Alguns nadas mais alguma coisa”

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Fernando Absalão Chaúque

Professor, escritor, poeta e blogueiro. Licenciado em Ensino da Lingua Inglesa. Autor de ''Âncora no ventre do tempo'' (2019) e co-autor de ''Barca Oblonga'' (2022).

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