“Pensar na Moçambicanidade como Substracto Axiológico na Construção do Sistema Nacional de Educação Moçambicana” - Artigo Científico – Por Cláudio João Sindique



“Pensar na Moçambicanidade como Substracto Axiológico na Construção do Sistema Nacional de Educação Moçambicana” - Artigo Científico – Por Cláudio João Sindique



INTRODUÇÃO
O presente artigo discute sobre a Moçambicanidade como Substrato Axiológico na Construção do Sistema de Educação em Moçambique à luz da visão de Severino Ngoenha. Em Moçambique pouco tem se discutido a questão da Moçambicanidade, os currículos fazem pouca referência à moçambicanidade. É por isso que este artigo toma a base da discussão a Moçambicanidade ou Identidades que se enquadra na construção do sistema de educação em Moçambique.
Tomo como ponto de partida, que a moçambicanidade deve ser vista como uma construção social ligada ao sonho de pertecermos a uma pátria, a uma nação. Entranto, o conceito moçambicanidade não deve ser visto de forma isolada, as línguas locais jogam um papel importante na construção da moçambicanidade. É a partir dessas línguas, que os moçambicanos revelam-se e expressam seus modos de ser, por isso o resgate das línguas locais responde a consolidação da moçambicanidade. Este artigo tem como objectivo geral: Analisar o substrato axiológico do acto educativo para a Moçambicanidade na construção do sistema de educação em moçambique. De forma específica, pretendo perceber o significado da Moçambicanidade no acto educativo e do seu valor social; e Identificar o papel que o Estado e as Universidades jogam na construção da moçambicanidade.
Para a realização deste artigo, foram cruzados autores que descutem sobre a Educação, a moçambicanidade, o Estado. Os princípais referências teóricos deste trabalho são: Ngoenha (2000), Castiano, Ngoenha e Berthoud (2005), Ngoenha (1998), Ngoenha e Castiano (2011), Castiano (2005), Basílio (2010).

1. Reflexão Axiológica sobre a dimensão da Educação Moçambicana
Antes de qualquer abordagem neste tema, importa frisar que o conceito da moçambicanidade  é um projecto político fundamentado no novo Estado. Basilio (2010) entende a Moçambicanidade como sendo um projecto político em processo  que emergiu da necessidade de construir uma Nação única, livre e soberana oposta à nação portuguesa colonizadora. A moçambicanidade no contexto moçambicano é visto como fruto de reivindicação em busca do espaço geopolítico, da liberdade e independência. A identidade moçambicana foi concebida numa perspectiva voltada à construção do Homem Novo, do novo poder e da nova nação.
Severino Elias Ngoenha afirma que, a moçambicanidade como projecto político “nasce como negação dos moçambicanos em continuarem a ser uma província portuguesa” (NGOENHA, 1998: 20). A identidade moçambicana é legitimada pelo discurso da unidade política, igualdade jurídica e equidade económica. Estes três elementos unem as pessoas no espaço sócio-político e geográfico onde se constroem, preservam e transmitem as identidades nacionais. A moçambicanidade também é fruto de agregação de vários grupos culturais que existem em Moçambique.
Falar da reflexão axiológica sobre a dimensão da educação moçambicana, é procurar trazer uma abordagem sobre o estatuto da educação em Moçambique e, mostrar as dificuldades práticas que o sistema de educação em Moçambique vem sofrendo ao longo da história; Os valores morais que devem orientar o acto educativo. Mas acima de todo é procurar perceber o passado da nossa educação para pensar o  seu futuro. É por isso que este subtema procura fazer uma avaliação dos valores que eram transmitidos na educação tradicional, colonial, nacionalista e liberal.
  1. Educação tradicional
Ngoenha começa por nos lembrar que os diferentes grupos moçambicanos sempre tiveram os seus sistemas de transmissão de valores, veiculados geralmente pelos sistemas de ritos de iniciação. A educação tradicional corresponde sempre aos valores dos grupos e às condições socioculturais (cultura material e espiritual) às quais os grupos deveriam dar resposta. Para além dos valores e das suas garantias meta-sociais, os grupos ensinavam os jovens a conhecer a cultura material sobre a qual deveriam agir, os relacionamentos hierárquicos no interior dos grupos, uma ética social, mas também actividades integradoras como as danças, a música, etc (NGOENHA, 2000:45). A educação tradicional preservou a cultura, os valores moçambicanos, os hábitos e costumes dos moçambicanos.
  1. Educação colonial missionária
Sobre a educação colonial-missionária, Ngoenha diz que maior parte da educação estava subordinada as instituições religiosas, o ensino dos indígenas estava totalmente confiado ao pessoal missionário e aos seus auxiliares. Este ensino deveria, contudo, obedecer à orientação doutrinária estabelecida pela constituição política, a sua característica principal é a sua feição nacionalista, (NGOENHA, 2000:73).
Assim, o ensino em língua portuguesa torna-se obrigatório. Só a religião pode ser ensinada em línguas indígenas. Este sistema como aponta Ngoenha, favorecia pura e simplesmente as crianças portuguesas, uma vez que elas recebiam a escolarização na sua língua materna. As crianças nativas, obrigada a aprender a ler e a escrever numa língua que não era a sua, estavam numa condição inferior, (Ibid:74). Quanto aos valores, a educação tendia a afastar as crianças do seu “habitat” natural e a aproximá-las de valores portugueses. Nota-se que o sistema educativo, mesmo ao nível inferior, era diversificado e a desfavor dos nativos. Não havia nenhuma possibilidade dada aos nativos para se compararem aos portugueses. Aliás, Cipriano (2011:100-102) afirma que a educação colonial era elitista, estava assente na separação entre o trabalho manual e o intelectual, visava difundir um ethos colonial e recusou a nossa sociedade, a nossa cultura e a nossa personalidade. Esta educação colonial recusou tudo que era africano e moçambicano, desprezou o moçambicano, formando nele uma mentalidade de colonizado à imagem e semelhança do colonizador.
  1. A educação nacionalista
A partir de 1975, o governo de Moçambique nacionaliza o ensino. Ngoenha afirma que, com a independência, a educação deveria participar na criação da nação moçambicana. Por isso, o termo ensino nacionalista pode ser tomado em dois sentidos; no sentido em que a finalidade da educação era o nacionalismo moçambicano, a nação moçambicana, e o sentido de pertença à nação moçambicana, (NGOENHA, 2000:78). É exactamente neste período que começa a luta por uma educação moçambicana, toma-se a moçambicanidade como um valor a ser enaltecido.
Sobre a tarefa da educação, Ngoenha afirma que nos ombros da educação, estava a árdua tarefa de cimentar os pressupostos axiológicos de pertença à nação moçambicana, de combate ao tribalismo, de enraizar cada homem e mulher na terra moçambicana. A educação tinha também a missão de dar aos homens e mulheres os instrumentos que permitiriam responder ao que a liberdade implicava em termos de responsabilidade. Com a entrada do nacionalismo, os intelectuais da frente propuseram-se a substituição da educação colonial, que era de carácter elitista, para uma educação igualitária com uma formação orientada para a colectividade, difundindo os valores da Moçambicanidade, Colectividade, Patriotismo, Igualdade, etc.
Entretanto, Ngoenha sublinha que a tarefa ideológico-política não era necessariamente igual e proporcional à tarefa sócio-económica da educação. “Educar para a moçambicanidade era uma tarefa politica”, (NGOENHA, 2000:78). Durante anos, os moçambicanos eram aqueles que iam a escola portuguesa e aprendiam que o sentido de pertença, a sua identidade, correspondia ao espaço geopolítico da ocupação português (Ibid:79). Algo tão preocupante que Ngoenha coloca aqui, e que é mais grave, é que os valores vinculados por este modelo educacional não eram pensados em Moçambique, nem em função dos valores da moçambicanidade.
  1. A educação Liberal
Com a entrada do Banco Mundial em 1984, no panorama educativo moçambicano, começa a quarta fase. Trata-se de uma fase centrada na educação dos moçambicanos aos valores da democracia e do liberalismo, que supõem participação, mas também iniciativa, (NGOENHA, 2000:84). Nesta fase liberal, com a entrada de uma nova estrutura educativa, procura-se prospectar uma educação mais prática, mais realista e, sobretudo, uma educação que se propõe utilizar o substrato linguístico das populações. Enquanto as línguas autóctones, no processo de educação, foram combatidas pelo sistema nacionalizador português, a Missão Suíça, durante este período liberal que teve as escolas sob sua responsabilidade, resgata a língua tsonga como substrato de educação e, com resultados muito positivos.
2. O Papel da (s) Língua (s) na Construção da (s) Identidade (s) ou Moçambicanidade
Segundo Basílio (2010:194), a questão das línguas Afro-Moçambicanas é controversa, na medida em que elas passaram dois momentos políticos. O primeiro momento é caracterizado pela opção da língua portuguesa como língua da unidade e, por conseguinte, de identidade nacional. O segundo momento é de reconhecimento político das línguas locais como fundamentos da unidade nacional. Neste momento, se estabelece uma relação dialógica entre as línguas locais e o português. Uma preocupação política era a integração das línguas locais no currículo como forma de revalorização das línguas nacionais rumo à moçambicanidade consolidada, (Idem:194).
Neste sentido, o resgate das línguas locais responde a consolidação da moçambicanidade. O português e as línguas afro-moçambicanas são arcabouços da identidade moçambicana. Elas são esferas a partir das quais os moçambicanos revelam-se e expressam seus modos de ser.
Nesta mesma linha de pensamento, Ngoenha (2000) vai resgatar a figura de Alexandre Vinet, para explicar o papel das línguas locais na construção da moçambicanidade.
Ngoenha afirma que Vinet celebra a língua como fundamento da cultura, para ele, a língua é importante porque permite classificar, definir, nominar. A língua é pensamento, Para Vinet, a escola deve ser um lugar de cultura, (Vinet apud Ngoenha, 2000:107). Sobre a importância da língua Vinet diz o seguinte:
Cada indivíduo deve falar a sua língua materna com facilidade e domínio. Dominar a língua materna é prova de virtude, civilização e prenuncia ao progresso. O progresso e civilização encontram-se a medida que se mergulha profundamente a palavra. Através da língua era possível atingir a pessoa, no seu gosto, na sua sensibilidade, na sua reflexão, na sua consciência, (Vinet, apud Ngoenha,2000:108).
Entretanto, Vinet estava convencido de que a natureza do idioma determinava a civilização de um povo. Sobre este assunto, para ele a língua é sempre o reflexo dos costumes de uma época e de uma dada sociedade. Na língua, manifesta-se a moralidade da pessoa que fala ou que escreve. Escrever e falar bem é um acto de grande valência ética, daí a necessidade de dominar bem a sua língua, (Ibid:109). Nota-se que o discurso de Vinet dá mais primazia a Língua, ou melhor, a educação tem esta tarefa de fazer com que o Povo aprenda a sua língua, valorize a sua cultura, pois, a língua é o reflexo dos costumes de uma dada sociedade. Podemos inferir que a partir do domínio da língua, da valorização da sua cultura, nasce aqui a moçambicanidade como um valor, criamos assim o sentido de pertença, da nação moçambicana.
Contudo, José de Sousa Miguel Lopes (2010:195), no seu livro Educação e Culturas Africanas e afro-Brasileiras: Cruzando Oceanos, alinha-se a este pensamento, referindo que no mundo existe entre cinco e vinte mil idiomas, mas cada um reflecte uma visão singular do mundo, um padrão de pensamento e de cultura, de um determinado grupo humano, embora alguns estejam em perigo de extinção. Mas todas essas línguas expressam a natureza das culturas e manifestam os sujeitos em sua colectividade e singularidade. E as línguas afro-moçambicanas como chama Basílio, tem uma força e expressam as culturas, as tradições, os provérbios e as identidades dos núcleos étnicos. Elas expressam a tradição popular revelando o espírito de cada grupo. Acrescenta Lopes, que os provérbios, os contos e as histórias são expressas em línguas autóctones para manter a sua emocionalidade sociocultural, (Lopes, 2010:195). Além dos usos e costumes, os moçambicanos distinguem-se internamente, através das línguas faladas e as línguas expressam uma unidade básica de identidade étnica.


Moçambique é um país multilinguismo, e essas línguas como dissemos antes, expressam uma unidade básica de identidade étnica. Cada uma das línguas tem um potencial sociocultural que responde a um determinado grupo falante. Esse potencial que se torna fonte de identidade das populações está sendo resgatado para a consolidação da moçambicanidade.
Entretanto, Lopes (2010:131) acredita que as línguas só serão capazes de construir a moçambicanidade se existir uma pedagogia intercultural consistente em seu direcionamento para a alteridade, em sua abertura ao outro. O outro também, é como eu, é um sujeito (activo, responsável, dotado de um capital cultural próprio).
2.3 O Papel da Comunidade na Concepção do Projecto Educativo para Formação das Identidades/ Moçambicanidade
No contexto moçambicano, como em qualquer canto do mundo, a família ocupa um lugar central na construção de identidades e culturas. Identidades que se dialogam com a identidade política ajudando a fortalecer o convívio entre as pessoas nas suas vidas laborais. A família representa uma das primeiras instituições que costura as identidades sociopolíticas culturais dos indivíduos. A família apresenta-se como núcleo funcional, trabalhando em rede com a educação escolar. Como diz Basílio (2010: 218), “que a família inicia e termina todo o processo de construção da personalidade humana”. Ainda na sua linha de pensamento, Basílio (Idem:218) sustenta que “a família e a comunidade são o começo da formação social e cultural que será consolidada pela escola, elas são a base de formação da criança”. As crianças aprendem dentro das comunidades e no seio familiar como lidar e como se relacionar com a autoridade pedagógica da colectividade da qual pertencem, através dos padrões de interacção social ensinados tanto pela família quanto pela escola. Na visão de Michel Aple (2008:128, apud Basílio, 2010:219), afirma que a família e a comunidade constituem um primeiro momento de formação da personalidade, de educação e de socialização das crianças. Elas inculcam nas crianças as normas e os valores da convivência social e cultiva nas crianças o sentimento de obediência, de respeito e da unidade que constitui a base do dever moral.
Com efeito, a família, em Moçambique, como um dos grandes pilares da formação da identidade das crianças, é uma verdadeira instituição educadora que revela o sentido original e a substância fundamental da essência humana. Ela torna-se o primeiro espaço de formação e socialização humana. Como instituição da sociedade civil inculca as normas e os valores tanto às crianças, aos jovens e aos adultos não escolarizados quanto aos escolarizados. A família oferece a educação de base inculcando nas crianças uma forma de estar e de ser voltada para o respeito aos mais velhos. Isto é, inculca códigos de conduta que orientam o saber ser, saber estar e o saber fazer dos jovens na comunidade.
3. O ESTADO E A(S) UNIVERSIDADE(S): INSTITUIÇÕES PARA A CONSTRUÇÃO DA MOÇAMBICANIDADE
O Estado e a Escola exercem um papel crucial na construção da moçambicanidade baseada na igualdade dos direitos entre os cidadãos. Essas instituições cimentam a unidade política que reconhece a pluralidade de diversas tradições políticas e culturais que formam o país, (BASÍLIO, 2010). Na organização do Estado moçambicano, a Escola desempenhou um papel relevante na formação para a cidadania, para o trabalho e para a convivência sócio-política, tanto para as expressões culturais, quanto para a participação solidária, na construção da vida individual.
Em vista à construção da moçambicanidade, o Estado organizou a escola e o currículo nacional, no qual foram incorporados os princípios da Unidade e do Homem Novo.
A preocupação deste subtema é mostrar o papel que o Estado e as Universidades desempenham na construção da moçambicanidade. É verdade que as duas instituições são meramente políticas, mas uma cria os valores e normas e outra é que socializa os educandos. Como advoga Basílio (2010), que o Estado cria valores e normas de convivência social. A Universidade enquanto instituição educacional socializa tais valores e normas de convivência sociopolítica institucionalizada pelo Estado visando formar cidadãos com o sentimento de pertencimento nacional. As duas instituições realizam um papel importante na construção da moçambicanidade.
  • Uma das actividades do Estado é educar para a cultura, para a consciência moral. A tarefa educativa e formativa do Estado consiste em criar novos e mais elevados modos de civilização e em adequar a civilização e a moralidade das massas populares às necessidades da contínua progressão económica dos cidadãos, (Gramsci, 2007 apud Basílio, 2010:178).
  • A Universidade por sua vez torna-se uma das principais instituições que realiza a actividade do Estado, razão pela qual, há uma íntima ligação entre a Universidade e o Estado na formação de cidadãos moçambicanos. A primeira tarefa da instituição universitária é a formação humana, ética tecnocientífica, cultural e política. Em contrapartida, a Universidade educa as pessoas não só para a vida científica, mas também ética e política. Educar para a Moçambicanidade e cidadania significa preparar homens e desenvolver de forma a harmonizar as qualidades humanas fazendo com que as pessoas tenham íntima ligação com a pátria, (BASÍLIO, 2010:181).
Educar para a moçambicanidade não é um trabalho de um dia, mas sim um projecto em construção, como prefere chamar Basílio, que é um projecto em andamento. A família sendo célula do Estado, educa as crianças a tornarem-se homens responsáveis pela sociedade. As crianças são educadas desde o nascimento até a idade adulta com finalidade de cultivar, na sua alma, o amor à pátria (patriotismo), o espírito da moçambicanidade. Educar as crianças para cultivarem o sentimento patriótico é um princípio que se aplica a todas sociedades, diz Basílio, (Ibid:181).
Dentre as tarefas políticas conferida à Escola para cimentar a unidade nacional, Mazula destaca as seguintes:
Criar, desenvolver e consolidar uma sociedade nova, assente numa mentalidade nova que oriente atitudes e práticas para a construção de Moçambique unitário, internacionalista, económica, cultural, político e militarmente auto-suficiente (…) formar homem novo com plena consciência do poder da sua inteligência, criar (nos alunos) uma personalidade moçambicana (…); criar uma consciência de responsabilidade e solidariedade colectiva, livre de todo o individualismo e corrupção, desenvolver a unidade do povo moçambicano, (Mazula, 1995, 110-111).
Sobre esta citação de Mazula, fica claro que as tarefas centrais da Escola resumiam-se em “formar o novo cidadão ou construir a moçambicanidade”. Isto significa também tomar um modelo ideal capaz de convergir os aspectos culturais e éticos locais numa questão nacional.
Talvez a visão de Gómez (1999) sirva nos de modelo para compreensão deste debate, quando ele afirma que o Estado e a escola exercem funções específicas de educar os moçambicanos para cultivarem o espírito de cidadania e de democracia. A escola forma sujeitos capazes de dar continuidade aos projectos de revolução e da moçambicanidade. E a Escola/ Universidade educa para a moçambicanidade. Educar para a Moçambicanidade inicialmente significava inculcar nas pessoas a consciência revolucionária, mas hoje significa inculcar a consciência de cidadania e de democracia, (Basílio, 2010:188).

3.1 O que Significa Educar para a Moçambicanidade?
Falar da educação para a Moçambicanidade nas palavras de Ngoenha e Castiano é criar um discurso a moçambicanidade não só como um fim a atingir, mas sobretudo como um valor. A moçambicanidade como valor deve ser o substrato axiológico sob o qual se deve basear a construção de todo o sistema de educação em Moçambique, (NGOENHA, 2005:268).


A Moçambicanidade pertence duas ideias e valores básicos: a unidade e diversidade ou ainda unidade na diversidade. Moçambique actual tem o dever de não pôr a unidade nacional alheia, a prática da unidade não se deve limitar a discursos de ocasião ou transformar-se em letra morta nos documentos partidários. Ainda nesta dimensão da unidade e diversidade, os autores afirmam que apó-Independência, por exemplo, era frequente a educação organizar festivais nacionais de desporto e cultura, ver jovens que cruzavam o país para se entregarem aos projectos comuns, jovens e adultos a cantarem juntos independentemente da sua proveniência. Nivelaram as culturas particulares em benefício de um valor que se considerava maior. Entregamos a nossa particularidade em benefício da unidade, (cfr, Ngoenha, e Castiano, 2011:266). Entretanto, a unidade só será possível preservando o diferente.
Há uma terceira dimensão da diversidade: a política. Efectivamente, com o multipartidarismo acentua-se o pluralismo de ideias políticas que não se esgota nos partidos, embora estes sejam a forma mais organizada de expressão. Neste aspecto, os programas de educação cívica devem ser adoptados segundo esta realidade. Os alunos devem confrontar-se com os programas dos partidos, associações cívicas e ideias políticas de individualidades na sala de aulas. O que é controversa na sociedade deve também ser controversa na sala de aulas, (Ngoenha, 2005).

3.1.1 Educar na base das Línguas Nativas
Se olharmos à situação geográfica do próprio Moçambique, identificamos em cada região, uma cultura específica e uma língua predominante, e a maior parte das crianças moçambicanas não tem o português como língua materna, é de facto necessário explorar e alargar a experimentação a outras áreas de Moçambique. Como sustenta Ngoenha que, “se a língua é a janela através da qual se olha para o mundo, as crianças falantes de duas línguas, teriam culturalmente, para além das vantagens de aprendizagem, uma maior abertura para o mundo; ao mesmo tempo, um maior respeito, amor e acatamento pelos próprios valores e pelos valores dos próprios pais”, (Ngoenha, 2000:212).
Actualmente, as comunidades lutam para preservar as suas línguas dialogando-as com o português. Nas relações laborais, religiosas, comerciais e familiares, as pessoas se servem das suas línguas e do português. Isto significa o resgate das línguas nacionais e o reconhecimento do português como cartão nacional de identidade. As pessoas estão convictas de que falando suas línguas nacionais se sentem aproximadas das suas tradições linguísticas e culturais. Neste caso, a educação baseada nas línguas nativas, significa ensinar a ler e escrever e, sobretudo, integrar os alunos nas suas línguas para ajudá-los a construir as suas identidades. Esta educação na base das línguas, permite, ou pode permitir a auto-afirmação das línguas moçambicanas na comunicação e na consolidação das identidades e, desmistificar a ideia de que o português é único cartão de identidade.
Não há dúvida de que os moçambicanos transportam consigo dois cartões de identidade: o português e a língua local. Os dois cartões são validos, uma tem a força do interior e, outro tem a força dentro e fora do país, (cfr Basílio, 2010:204).


3.2 Educar para a Responsabilidade
No decurso da obra Estatuto e Axiologia da Educação em Moçambique, Ngoenha mostra com muita claridade, que figuras como André Cleric, Vinet, ou melhor toda acção missionária deixou como legado, a educação para a responsabilidade. A educação missionária formou individualidades, despertou o sentido de pertença, a razão de ser moçambicano.
Ngoenha entende que a educação missionária pode ensinar um pouco mais do realismo, isto é, mostrar a necessidade de adequar os currículos às necessidades vitais de Moçambique de hoje, aos desafios com que estamos confrontados. Hoje, são tantas crianças que encontramos na rua, nas cidades e no campo sem amparo de ninguém, essas crianças podem se transformar em delinquentes perigosos para a sociedade. Mas, estas crianças sabem limpar carros, abrir carros fechados, tirar pneu, reparar utensílios, fazer artesanato, etc. Se forem devidamente orientados nos binários sociais, podem ser cidadãos normais e podem mesmo dar uma contribuição importante a sociedade, (NGOENHA, 2000:213). Um dos desafios é criar sistemas atractivos para os educandos, com pedagogias e didácticas de integração capazes de utilizar o “saber” dos meninos da rua para integrá-los na sociedade, com capacitações profissionais reconhecidas. Na sua tenra idade, as crianças têm que ser integradas numa cultura de responsabilidade, de moçambicanidade, de participação, de trabalho, de diálogo e de tolerância. As técnicas de aprendizagens usadas por este grupo mintlawa seriam de grande utilidade para a educação moçambicana. A importância dos mintlawa na educação, consiste no facto destes servirem de modelos inspiracionais no resgate da nossa moçambicanidade. Olhar as equipas como lugar de responsabilização e de tomada de consciência de um lugar de pertença e de uma identidade moçambicana.
3.4 Educar para a Africanidade e a Inserção do Homem Moçambicano na Globalidade
Ngoenha e tal (2005:250) são unânimes nos seus pensamentos ao afirmar que a equação sobre o tipo de homem que se deve formar em Moçambique deverá ter outros parâmetros. Para ambos, o estatuto axiológico da educação em Moçambique deve-se submeter a uma tripla dimensão axiológica do homem moçambicano: a dimensão axiológica da globalidade, a dimensão axiológica da africanidade e a própria dimensão da moçambicanidade. A cada uma destas dimensões correspondem certos valores.
3.5 Educar para a inserção do Homem Moçambicano na Globalização
O desafio axiológico da educação em Moçambique é em parte o de formar um homem capaz de inserir-se criticamente no mundo global de hoje, ou seja, capaz de reconhecer os aspectos negativos da globalização que tendem a impedir a nossa autonomia. Na opinião de Ngoenha et al (2005:250), na base de educação temos que abraçar os valores universais, sem, no entanto, vergar perante as tendências de um imperialismo cultural. Como conseguir isto? Através da discussão das condições de existência de uma ética global. Em segunda linha, implica desenhar conteúdos curriculares e adoptar uma estratégica pedagógica à altura deste desafio de viver numa “aldeia global” sem perder a identidade.
Na mesma linha, Basílio (2010:281), advoga que as identidades não existem de forma isolada e vazia, mas relacionada uma às outras. A moçambicanidade para ele, não é formada apenas por conteúdos locais, nem é construída só a partir de conteúdos universais, mas é fruto de uma correlação de identidades globais. A moçambicanidade constrói-se levando em conta os fenómenos de globalização e do localismo. Entretanto, para Basílio a moçambicanidade não é uma realidade fechada a tradições locais, mas aberta ao mundo. Aliás, Castiano, acrescenta dizendo que precisamos educar para os valores inerentes a moçambicanidade, à africanidade e à universalidade, (CASTIANO, 2005:90).

4. Conclusão
Terminando a minha abordagem, gostaria de referenciar que a tese que defendo neste artigo até agora, foi o princípio de uma tentativa não acabada de mostrar que a nossa educação deve ser desenhada à luz da moçambicanidade, e que a moçambicanidade é um projecto em construção que vai se consolidando a partir da unidade política, cultural e económica. Mas para que esta moçambicanidade se consolide, é necessário que os nossos currículos estejam desenhado à luz dos interesses dos moçambicanos e incorpore a nossa cultura, as nossas línguas nativas e esteja em sintonia com as comunidades. Duas instituições que são importantes na construção da moçambicanidade; o Estado e a Escola/ Universidade. Desde a independência, essas instituições dedicaram-se à organização não só das instituições políticas, mas também da moçambicanidade, inicialmente do cunho socialista e, actualmente, da natureza capitalista. Elas são decisivas para a consolidação das relações internas entre os diferentes grupos étnicos e para a formação de cidadãos. Sublinho ainda,que a moçambicanidade como um projecto em andamento, ela não pode ser construida de forma isolada. Se queremos que a nossa educação esteja virada à moçambicanidade, é preciso que este mesmo homem a ser formado tenha traços da africanidade, que esteja à altura de se inserir no mundo global. No fundo estamos a falar das relações inter-etnícas, interculturais e transnacionais. Portanto, a minha  discussão grativou em torno da missão da educação na construção da moçambicanidade revolucionária e pós-revolucionária. Uma moçambicanidade que se afirmou com a descolonização, com a independência de Moçambique e com a democracia multipartidária. A moçambicanidade está sendo construida a partir da união dos grupos sociopolíticos e culturais, quanto a partir das instituições do Estado que disseminam as ideias e valores da unidade nacional, da paz e da democracia.

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Por Cláudio João Sindique
Fernando Absalão Chaúque

Professor, escritor, poeta e blogueiro. Licenciado em Ensino da Lingua Inglesa. Autor de ''Âncora no ventre do tempo'' (2019) e co-autor de ''Barca Oblonga'' (2022).

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