Mafavuka - O Ressuscitado



Mafavuka - O Ressuscitado
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Muluci, apenas tinha a certeza de ter nascido na terra de Missinya Yakupsala Matchikiri, durante a guerra civil, no auge os regimes de Apartheid e de Ian Smith na John e Rodésia do Sul. A sua maior escola foi apascentar gado e atravessar o Limpopo a nado, criando inveja aos famintos e apetitivos crocodilos. A sua maior herança foi a enxada e a charrua, Xinbutsu Muzaya gritava ao mesmo tempo que gesticulava em suas orgias alcoólicas.

Com doze anos de idade divorciava-se do campo e nas asas de Xitonhana voava rumo a grande capital, e ele jurava que Maputo seria o seu trampolim em direcção a sua meta, a terra do Rand e depois do seu primeiro contrato no Wenela, enviaria o dinheiro para o lobolo da moça mais linda de Chibabel, Nhoshana.
Muluci, corria atrás do seu sonho. Jά em Maputo teve o seu primeiro emprego como padeiro e exercia o seu ofício com mestria e muito zelo pois, amava amassar o trigo e torrar o pão. Foi numa altura de crise, e por via disso faziam-se longas e intermináveis filas nas padarias da Cidade de Maputo no geral, na de Malhangalene em particular, na rua do mesmo nome e devido a sua bravura na organização das filas para a aquisição do pão nosso de cada dia tornou-se uma figura incontornável nas redondezas. Passados alguns anos abandonou a casa do seu tio na Mafalala e foi arrendar uma casa de madeira e zinco na Viera (Maxaquene). Muluci trabalhava em turnos alternados entre noites e dias. Passou a viver numa casa comboio e compartilhava o pátio, e casa de banho com os restantes agregados instalados naquele espaço comum. Aquele talhão era um Moçambique em miniatura, e ali criou amizades e privou com Bitongas, Chopes, Ndaus, Senas, Macuas, Rongas, Makondes entre outros.


Os sonhos de Muluci foram engolidos pela sedutora cidade e nisto, ele traiu o seu projecto, esqueceu-se da linda Nhoshana, adiou a sua ida à terra do rand, perdeu as coordenadas da sua terra natal. Enamorou-se pelas Marongas de lábios gulosos, pelas Machopes de traseiros fartos, pelas Macuas de caras lindas, sem esquecer das Makondes de seios excitados e embarcou na viagem do álcool, sem nunca se recordar da sua Machangana Nhoshana.


Amou e foi amado, traiu e foi traído, dedilhou a guitarra do prazer, percorreu o Moçambique feminino e contribuiu positivamente na natalidade. O tempo passava e o seu vício pelo álcool aumentava e, neste combate, o vício venceu o ofício, ele fazia turnos alternados. Ficou viúvo do paladar, pois para além do álcool, tinha intimidades com o tabaco e o piri-piri. Muluci era um boémio, amante de um bom copo, viúvo do paladar, um escape do tabaco, não comia sem piri ˗ piri. O tempo seguia o seu trajecto e a intimidade entre o gazenze e o álcool fortificava-se, mas a sua produção laboral ia decrescendo e, por via disso, o patronato premiou-o com férias definitivas e um envelope com alguns trocados como compensação pela sua juventude ali perdida.


Muluci zanzou pela cidade das acácias a procura da sua segunda oportunidade, mas debalde, e à medida que os seus intentos iam ficando frustrados, ele mais bebia, e assim as portas da ocupação iam se fechando. O tempo passava e as portas da ocupação trancavam-se, enquanto o álcool ia tendo mais zonas libertadas no seu organismo. A Vida ia de mal a pior e o cerco de Muluci ia apertando-se, até que alguém que o conhecera nos tempos das vacas gordas na padaria Malhangalene, arranjou-lhe um emprego numa fábrica de aguardentes algures no Zimpeto, como fiel de armazém. Aceitou sem saber se agradecia a Deus ou culpava o Diabo. Mesmo assim segurou a oportunidade como os melhores guarda-redes defendem a sua baliza. Começou a frequentar uma seita religiosa dentre as várias ˝milagrosas˝ espalhadas pela capital, deu trégua ao álcool e ao tabaco, mas a sua relação com o piri-piri parecia perpétua. A vida voltava a sorrir, estava a reconstruir a sua vida com uma irmã espiritual por sinal uma viúva, que lhe encaminhou para a casa do senhor. Tudo ia de vento em pompa até que teve um fatal encontro com uma garrafa de aguardente no seu posto de trabalho, tentou resistir, evitou-a, mas era uma longa noite de inverno e já vencido pelo desejo, abriu-a com intenção de a cheirar e sorver apenas os lábios da mesma e quando deu por si, jά havia liquidado aguardente e estava com as calças molhadas e perfumadas de urina e em sua frente estavam o seu gerente e alguns dos seus colegas, arrependeu-se do dia que conheceu a cor do álcool, mas infelizmente, uma vez mais ia engrossar o já numeroso exército de desempregados.


O cerco apertava-se, ninguém mais, até ele próprio já não acreditava em si, deambulava pelas cidades de Maputo e Matola fazendo biscates como carvoeiro, ajudante de pedreiro, era um autêntico faz tudo, e como agravante, bebia em demasia e comia quase que nada, já ingeria as bebidas caseiras e como desculpa Muluci sempre gritava todo o sabão lava. E Numa tarde de inverno, depois de mais uma jornada laboral no Mercado de Zimpeto, enfiou-se num dos bares senta baixo, entre os Complexos Thiyinko e Molumbela, exagerou na dosagem e quando já regressava à sua humilde residência, que recebera logo após as cheias do ano dois mil em Khongolote, em memória aos velhos e bons tempos da travessia do Limpopo, eis que as suas já débeis pernas devido ao consumo excessivo do álcool cederam e Muluci beijou o chão sem apelo nem agravo, quando ia atravessar o rio Mulaúzi. Na manhã seguinte, gente curiosa aproximou e reconheceu-o, estava gelado, mudo e inerte. A notícia da sua morte espalhou-se a uma velocidade supersónica. Familiares, curiosos e peritos foram até ao local do incidente para conhecer as causas da morte do Machangana, examinar o cadáver e preparar a posterior evacuação do finado, e quando o sol já estava quentinho e gostoso como tem sido nas manhãs de inverno, eis que o Muluci abre os seus olhos ao jeito de quem sucumbiu nos braços do álcool, e com uma voz rouca e trémula pronunciou as seguintes palavras para o gáudio dos presentes "xibutsu muzaya xiwa nikupfuka" e no mesmo instante morria o Muluci e nascia o Mafavuka.



CONTINUA



Por Minyetani Khossa


Glossário
Missinha Yakupsala Matchikiri ˗ cajueiros
Muluci ˗ pastor de gado
Nhoshana ˗ Felicidade
Xinbutsu Muzaya ˗ Expressão originária do distrito Chibuto em Gaza, quando falam das suas origens é uma marca do orgulho dos Gazenzes
Xiwa nikupfuka ˗ cair e levantar-se logo de seguida, aproxima-se a ser invencível
Senta baixo ˗ um bar sem assentos/cadeiras, os clientes sentam-se no chão ou em troncos
Xintonhana ˗Transportes Oliveira que faziam as Rotas Chibuto, Gaza ˗ Maputo, vice-versa
Wenela ˗ agência de emprego que servia de ponte entre as mineradoras sul-africanas e os potenciais candidatos moçambicanos a mineiros na Vizinha África de Sul
John ˗ Nome por qual é conhecida África do Sul, diminutivo da Cidade de Joanesburgo
Apartheid ˗ em afrikaans quer dizer separação (segregação racial)
Rodésia do Sul ˗ actual Zimbabwe
Ian Smith ˗ foi um político fazendeiro e militar que serviu como Primeiro-ministro da colónia britânica da Rodesia do Sul.


Fernando Absalão Chaúque

Professor, escritor, poeta e blogueiro. Licenciado em Ensino da Lingua Inglesa. Autor de ''Âncora no ventre do tempo'' (2019) e co-autor de ''Barca Oblonga'' (2022).

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