Foto de Alberto Bembele |
1.
?
-Se até a arte fala...
ora bem,
é inventora de mundos,
fantasias, sonhos,
medos fundos e incultos,
sabe ser dor,
alegria, tristeza,
vida e morte. É tudo quando quer.
E eu coitado
a me achar poeta.
2.
Abandono
No interior da casa,
o silêncio do quatro a imitar os passos do vento,
humanos duetos dos insectos
que me acomodam os medos,
candeeiro afogado nas tristezas da vida,
ao longe se atea o fogo da paixão
na mesma esquina um fulano a dar
um último trago...
noite que vem,
vem sorrateira
na sombra dum rato solitário
que passeiam dia inteiro pela casa
e como uma azagaia velha no meio da floresta,
sou eu no abandono dos sonhos fartos de mim.
3.
...
Não se deduz a nada
a fórmula com que digo que te amo
talvez ao meu silêncio
que é a nobre fala
de quem algo diz com maior deslealdade
da pureza dum coração em tormento
dos segredos inconfessáveis
ao brotar o infinito das águas
no azul do céu
que se deduz apenas no aceno das mãos
donas d'alguns mistérios ocultos nos gestos do olhar.
4.
A pensar que sou alegre
me atraso todos os dias ao chuveiro
dando bênção a vida
pela parte diminuta que sou nela
na alma um cântico de louvor me extrai
as mágoas mais fundas do milénio
com tal impaciência que enoja a casa inteira
e o que não me vem a cabeça
é que lá fora
há quem se banha todo no rio
na maior intimidade com as águas
Eu aqui a pensar que sou o mais alegre.
5.
Paredes
a navalha corta o silêncio que nos sangra a unha
a foto no chão da casa
acompanha os passos do tempo, envelhece.
e a parede está lá,
parede antiga, do passado, a mesma parede de ontem
a nos confidenciar segredos ditos
malditos e nunca confessados.
A metamorfose da folha verde,
outra folga que a solidão do quarto quebra
e
em novenas,
apenas reza... reza Madina,
reza o nosso amor precoce
esse amor de séculos atrás... evoluído
a meio século, a uma década,
um ano, a um mês, a uma semana de ser falso,
verdadeiramente falso,
evoluído...
ao dia em que nos conhecemos
para sermos sempre estranhos de nós
num aperto de mão, na intimidade conjugal de dois amantes religiosos...
afora,
a escuridão a devorar -nos às sombras
é com esta mão que te dou
não te entrego, me apego
a esse dar
sem me deixar entregar
para fingir que estou intacto
cada vez que estou em ti inteiro,
e já não nos há nada
se não o silêncio da noite
a rasgar o lençol freático
na extensão das paredes que não me deixam te ver
a estrela que brilha no céu
quiçá sejas tu,
a linda e formosa estrela cadente
que o céu inventou só para mim.
Por Jeconias Mocumbe