Elcídio Bila |
A editora Kuvaninga Cartão d’Arte, que era outrora conhecida como Livaningo Cartão d’Arte, produz livros com base em material reciclado; existe já há muitos anos em Moçambique e conta com vinte e cinco títulos lançados. O seu foco é publicar novos autores e fazer com que o livro chegue, principalmente, àqueles que não têm um alto poder de compra, por isso os mesmos são “comercializados” a um simbólico preço de 200 meticais. Além disso, a Kuvaninga preocupa-se em passar a mensagem de respeito a natureza, de respeito ao meio ambiente e de respeito à biodiversidade.
Elcídio Bila é editor e coordenador da Kuvaninga Cartão d’Arte. Conheci-o, primeiro, através das redes sociais e tive o privilégio de publicar as suas crónicas aqui neste blogue. Após isso, conhecemo-nos pessoalmente nas artérias da capital em um evento de lançamento de uma obra [já não me lembro do título nem do autor] editada por esta editora.
Esta entrevista que “fala” em torno de Elcídio como “pessoa”, como amante das artes e letras e especialmente como editor, nasceu de uma “conversa” que ocorreu na oficina da Kuvaninga, onde todo processo de reciclagem e produção de livros acontece.
Quem é Elcídio Bila?
Bom, eu tenho trinta anos, acho que posso começar daí, e quando se chega a esta idade ou quando se passam três décadas fica mais difícil dizer quem é a pessoa, porque muita coisa aconteceu e eu sou fruto de tudo isso que aconteceu; de tudo que fui sendo de lá para cá. E, ainda estou a tentar ser, estou a tentar encontrar-me para conseguir perceber afinal de contas quem é essa pessoa chamada Elcídio Bila. Mas, tentando responder, se calhar diria que sou um indivíduo muito plural, que gosta de aprender, sonhador, e que tenta materializar as suas ideias independentemente de serem boas, absurdas, grandes ou pequenas, há sempre um meio de fazer com que elas existam porque só disso depende a minha existência. Comecei como professor, que é fruto da minha formação - ensino de português - mas, depois meti-me no jornalismo em duas televisões, a STV e a TV Sucesso.
Actualmente sou assessor de imprensa para organizações, programas e figuras. Também sou coordenador de uma associação cultural chamada Nkaringana Arte, que usa a arte e cultura para o desenvolvimento das comunidades. Ademais, sou editor e co-fundador da editora Kuvaninga Cartão d’Arte que existe há 12 anos e que já publicou 25 títulos e se preocupa com o “fomento” da literatura e a promoção de jovens escritores.
Quando surge a paixão pelas artes e letras?
Esta paixão surge através do Hip-Hop tal como muitos que depois se aventuram na poesia passaram do RAP. Foi-me apresentado o ritmo pelo meu irmão mais velho, gostei. No início eu “repava” as suas letras, e com o tempo aprendi a compor as minhas, e no meio disso fazia letras de difícil compreensão, eram mais poemas exactos do que realmente letras de música. Então, parei de cantar as letras e comecei a declamar, virei um declamador, andei em diversos eventos de declamação de poesia, criei alguns espectáculos sobre isso, o que me facilitou o ingresso na associação Nkaringana Arte.
Depois disso, porque estávamos num ambiente em que muita gente fazia poesia, [acho que até agora ainda é assim], as pessoas identificam-se mais com o género poético, eu preferi fazer um pouco diferente, fui aos contos, publiquei o meu primeiro livro de contos em 2013, nesta editora Kuvaninga Cartão d’Arte. A partir daí fui dedicando-me mais aos contos, tenho mais um livro que o escrevo já há cinco anos, se tudo der certo lanço ainda neste ano; tenho rabiscos de alguns romances por aí. Na necessidade de publicar os textos que eu tinha, decidimos, eu, José dos Remédios e Jossias Guambe criar uma editora que permitisse que jovens como nós, que não têm acesso às editoras formais ou convencionais pudessem lançar os seus textos. Acho que essa foi a minha caminhada literária…
Quando surge a ideia de criar esta editora de livros “artesanais”?
Bom, eu quando estava na Faculdade de Letras e Ciências Sociais da Universidade Eduardo Mondlane, fazendo ensino de Português, foi-nos apresentado um projecto de livros de cartão que era um movimento que já se fazia na América Latina e na Europa; não é um movimento novo, não fomos nós que o começamos.
Cerca de 20 estudantes fizeram parte desta oficina na qual produzimos alguns livros, discutimos sobre algumas obras e no final o Luís Madureira que é um moçambicano que vive nos Estados Unidos onde é professor catedrático, e que nos trouxe o projecto e fez a oficina aqui em Moçambique, abriu a possibilidade de nós mesmos darmos continuidade criando nossas próprias editoras. De lá saíram duas, a primeira saiu com o nome da editora que Madureira havia trazido que era Kutsemba Cartão, e nós criamos Livaningo Cartão de Arte. Só que com o andar do tempo, acho que a Kutsemba Cartão parou de trabalhar e nós continuamos como Livaningo, só que em 2016 houve necessidade de trocar de nome para Kuvaninga e assim foi. Para nós os três foi uma oportunidade de ouro, embora estudantes de cursos diferentes, o José dos Remédios fazia literatura moçambicana, Jossias Guambe fazia ensino de inglês. O José dos Remédios já era uma pessoa [pelo curso] mais entendida à literatura, o Jossias Guambe embora fizesse ensino era artista plástico e já tinha começado a pintar há algum tempo, eu tinha, digamos uns três lados ao mesmo tempo, o primeiro era literário, não fazia literatura mas já fazia textos poéticos, também pelo meu curso ajudei muito na revisão linguística das obras e igualmente fui o primeiro designer [amador] da Livaningo fazendo as capas. Nós achamos que era conveniente juntarmo-nos, porque para além de gostarmos de literatura éramos amigos, dentro e fora da universidade, tínhamos os três o sonho de editarmos obras, conhecíamos muitos jovens como nós que não tinham espaço em editoras convencionais. E pelo facto desta forma de publicação de livros ser menos dispendiosa que numa editora industrial, nós preferimos isto, aliás, aliávamos assim várias artes: a literatura, as artes plásticas…
Capa em papelão reciclado |
O que ditou a mudança de nome de Livaningo para Kuvaninga?
Existe uma ONG chamada Livaningo que trabalha com o ambiente. Durante a vigência da Livaningo enquanto editora houve vários constrangimentos, muita gente confundia-nos com a ONG. Então porque a ONG já tinha mais de vinte anos no mercado e nós na altura só tínhamos quatro ou cinco decidimos abrir mão do nome, deixá-lo com eles pela robustez que já tinham enquanto instituição e nós optamos por um outro nome que, entretanto não muito diferente daquele que nós tivéramos e que preserva o mesmo sentido. Tanto Livaningo ou Kuvaninga significa iluminar.
Quais têm sido os grandes desafios no trabalho editorial?
A Kuvaninga debate-se actualmente com dois grandes desafios. O primeiro é alastrar-se pelo menos para as capitais provinciais dado que em Maputo o projecto já é conhecido. São 25 títulos publicados em quase todos géneros. Acreditamos que será crucial para o nosso trabalho daqui em diante irmos às províncias. Por acaso já começamos, estivemos no mês passado na Beira no festival do livro infantil organizado pela associação Kulemba. Mas queremos estar noutros sítios, noutros eventos e assim alastrarmos o nosso projecto e fazer com que autores de outros cantos do país que não sejam apenas de Maputo tenham oportunidade de publicar pelo menos os primeiros livros.
...Outro aspecto que é deveras crucial está relacionado ao patrocínio. Nós estamos a trabalhar a sete anos com custos próprios e isso inviabiliza um pouco aquilo que é o nosso objectivo que é de colocar este tipo de livros praticamente para todos jovens ou todos adolescentes, todos os que têm pouco poder de compra. Nós acreditamos que é um livro acessível comparando com os livros convencionais e nós temos feito poucos exemplares exactamente por falta de patrocínio. Estamos ainda a desenhar estratégias para ver de que modo podemos ter mais apoio de forma que os nossos exemplares sejam “maiores” e que também não nos limitemos aos lançamentos de livros. Que o lançamento seja a primeira actividade, porém queremos fazer mais debates, mais palestras, mais mesas redondas, mais conversas com os autores, sobretudo nas escolas onde nós achamos que está o nosso público-alvo e fomentarmos mais a ideia de leitura e quiçá a de escrita também.
O que a editora quer ganhar com base nos livros?
Uma das razões que faz com que a Kuvaninga continue a existir é já ter granjeado simpatia no público. O livro aqui em Moçambique, se calhar em todo mundo, é caro e as pessoas ainda que tenham vontade de ler sentem-se limitadas quanto ao seu acesso. Ora, nós colocamos o livro a um preço que julgamos que qualquer pessoa possa adquirir. E mais, estamos com o sonho de criar bibliotecas de livros artesanais para aqueles que, ainda que achemos este preço acessível, não conseguem comprar, mas pelo menos nessas bibliotecas a pessoa pode ir lá e ler.
O mais interessante é que não publicamos autores consagrados. Nós publicamos os novos. Então, nós estamos a colocar novos leitores perante novos autores e são autores de qualidade; o facto de serem novos não significa que não sejam de qualidade, portanto o nosso ganho é esse - fazer com que sejam criados novos autores e ao mesmo tempo sejam criados novos leitores. Também aliado a isso, passamos uma mensagem de respeito a natureza, de respeito ao meio ambiente, de respeito à biodiversidade e de consciencialização para com os nossos actos. Quem vê as nossas capas fica com a ideia de que aquele material pode ser útil para alguma coisa, não se joga fora e podemos também assumir que seja a personificação daquilo que significa lixo nas nossas famílias seja plástico, papel, garrafas ou outro material. Se não puder usar como capa de livro pode usar como vaso, pode usar como um outro utensílio doméstico, etc. Então, nós através das capas de livro transmitimos a mensagem de que é sempre bom “reaproveitar aquilo que formos a usar”.
Quais foram os momentos mais altos ou mais marcantes no percurso da editora?
Para nós todos momentos são marcantes. Porém, o momento mais marcante ainda é quando nas cerimónias de lançamento de livros, temos lá pais, irmãos, amigos, familiares diversos de um escritor que esteja a publicar através da Kuvaninga, todos eles emocionados, todos eles sorridentes e aos abraços. Nós achamos que conseguimos transformar uma determinada mentalidade, e nós conseguimos (fazer) mostrar que o escritor que lança connosco perante as pessoas próximas de si não é uma simples pessoa, é uma pessoa especial por apresentar o seu pensamento, as suas ideias, a sua criatividade em forma de livro.
Outro aspecto que a nós agrada bastante é o facto de transmitirmos sorrisos às crianças. Nós fazemos igualmente oficinas de pintura para as crianças e em todos eventos que a gente vai, feiras, festivais, etc., percebemos que mais do que pular a corda ou estar aos brinquedos, a necessidade de registar quer a natureza, quer um desenho ou alguma coisa nas nossas capas é maior e isso activa a criatividade e a imaginação da criança; faz com que essa criança também esteja mais interessada com o próprio livro.
Capa em papelão reciclado |
A conversa que se desenrola durante as oficinas mostra claramente que as crianças têm um grande potencial, apenas precisam de ser activadas. É esse pretexto que a gente usa para que as crianças mostrem o seu potencial e decidam pelo menos alguma coisa no que concerne às suas vontades, seus desejos, pelo menos através da pintura. Emocionou-me bastante o que houve na Beira. Tendo em conta que era o primeiro contacto com as crianças do centro do país, percebi que eram crianças muito inteligentes, que tinham subsídios suficientes sobre o ciclone Idai, diversas questões climáticas, o direito das próprias crianças, que muitas vezes nós achamos que elas desconhecem ou que nós negligenciamos, ensinamos pouco. Mas em oportunidades como as que a Kuvaninga transmite às crianças, mostra-se que seguramente teremos jovens e adultos pensantes e com grandes valências para decidir sobre o país e para formar uma sociedade de pessoas cultas, educadas e que não olham para o livro como um bicho-de-sete-cabeças.
Se pudesse escolher um lugar ou tempo para viver, qual seria?
Eu escolheria Moçambique, em nenhum lugar especificamente, qualquer canto. Eu sou moçambicano e acho que aprendi a ser moçambicano, e aprendi a explorar os nossos recursos. O lixo é nosso, é um recurso que nós temos; as cabeças que escrevem são nossas e se calhar se eu estivesse num outro país ou num outro canto do mundo não teria tido esta iniciativa juntamente com os meus colegas.
Também acho que escolheria este tempo em que as coisas estão a acontecer. Não consigo identificar o tempo exacto, mas todo tempo em que continuarmos vivos acho que é um tempo determinante para fazermos alguma coisa. Por mais que algumas coisas demorem não significa que não aconteceram porque era um tempo errado, mas porque era o tempo de prepararmo-nos para chegar num outro tempo já habilitados para fazer a determinada coisa.
Quem gostarias de ter conhecido (uma figura…) e porquê?
Eu não me prendo a figuras. Há, claramente, pessoas que eu gostaria de conhecer, mas se tu me perguntares quais, eu não te vou dizer porque eu não as conheço, porque são pessoas que se calhar lutam pelas mesmas causas que as minhas. … Cada dia que passa conheço novas pessoas [conheci a ti também] e tu foste útil porque eu publiquei as minhas crónicas lá no teu blogue e estás agora a me entrevistar, e não passaria da minha cabeça que conheceria um Fernando, o que é que ele mudaria na minha vida. Se calhar o Fernando não muda nada, mas as suas ideias e aquilo que ele transmite como apoio, quer para mim, quer para Kuvaninga ou para a vida na sociedade. Não existe uma pessoa de facto, mas existem causas e espero conhecer as pessoas por detrás das causas e que essas causas me sejam úteis e eu úteis a elas.
Pensa em algum dia criar uma editora convencional?
Não. Porque a Kuvaninga é uma editora sem fins lucrativos, e eu não penso em fazer dinheiro por via de editora, mas tenho outros sonhos, fazer uma revista [física, convencional…] por exemplo. Mas uma editora convencional, não. Acho que não preciso.
Entrevistado por Fernando Absalão Chaúque