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“Quem pagará o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?
Quem, dentre amigos, tão amigo
Para estar no caixão comigo?
Quem, em meio ao funeral
Dirá de mim: — nunca fez mal (…)
Quem virá despetalar pétalas
No meu túmulo de poeta?”
A nossa viagem pela América do Sul continua, por enquanto atracamos e permanecemos acomodados na terra do samba mergulhando nas palavras e no encanto literário que os artistas desta terra nos oferecem, a titulo de exemplo, acima estão expostos alguns fragmentos do poema baptizado “A hora íntima”, da autoria do compositor e poeta brasileiro, Marcus Vinícius Melo Moraes, conhecido no mundo da arte como Vinícius de Moraes e alcunhado “Poetinha” pelo Tom Jobim. Além de ter sido um dos mais famosos compositores da música popular brasileira e um dos fundadores do Bossa Nova, também foi dramaturgo e diplomata. De Moraes é uma referência na literatura, cinema e música brasileiras, representando a corrente moderna.
A escrita de Vinícius é composta por um arsenal lírico que contribuiu de forma considerável no desenvolvimento das artes da terra de “ordem e progresso”; podemos destacar parte desse “arsenal” livros como: Poemas, Sonetos e Baladas; Livro de Sonetos; O Caminho para a Distância e Antologia Poética.
Ele sempre considerou que a poesia foi sua primeira e maior vocação, e que toda sua actividade artística deriva do facto de ser poeta.
Há muito que falar de Vinícius de Moraes, pois é uma fonte de conhecimento e experiências inumeráveis. Para não “esgotar” tudo e escassear-nos questões para o nosso interlocutor, passo para a pergunta habitual e introdutora que caracteriza nossas conversas d’Além Mundo.
Quem é “Poetinha”?
VM: Sou o mar patético, sonâmbulo e sem fim envolto em sono, na voz do vento onde o silêncio dorme louco e sem destino como espectro da treva intacta no sepulcro de neve aberta ao vento.
Considera-se uma pessoa de múltiplas personalidades?
VM: “Na atonia das ondas redondas, náufrago entregue ao fluxo forte da morte… que em mim a vida renasceu no verde lençol da areia do mar”. Inelutavelmente…como criança!
Considera-se uma eterna criança?
VM: Quisera tanto… mas o instante passou.
“Uma mulher me ama como a chama ama o silêncio”, excerto do segundo soneto do conjunto de “Quatro sonetos de meditação”. És romântico?
VM: “O amor se afigura como um patético tormento, pensar nele é morrer de desventura, não pensar é matar meu pensamento, (…) o amor é seiva eterna e forte…”
Quando e como se deu o teu primeiro contacto com a literatura?
VM: “Numa paixão de tudo e de si mesmo”, quando uma vida mal-aventurada se aventurou a coisa amada que criou a aurora e deu luz ao dia que fecundou as rosas e as despetalou no mar, onde as sombras se casam nos raios noturnos da lua perdida.
Se não fosse um “literata”, o que seria?
VM: Puras lágrimas de aurora…
Porquê “lágrimas d’aurora”?
VM: Porque me foi entregue a satisfação de entender as lágrimas.
“Quem vai pagar o enterro e as flores se eu me morrer de amores?” Um dos versos do poema “A hora íntima”. Tem medo da morte ou de ser sepultado como um indigente?
VM: O céu é antigo…mas o crepúsculo a desfolhar as primeiras pétalas de treva é mais que olhos trilhando luzes que brilham longe longe nos breus... A morte é como um peixe nadando entre os véus da água sombria coberto pela redoma da grande noite vazia suspensa na crista agreste do imenso abismo sem meta.
É patrono de um invejável e vasto arsenal literário, qual é a fonte da tua inspiração?
VM: O fel da dúvida… o embriagante mel da combustão do efémero perfume da mulher a palpitar como uma flor carnívora na treva.
Quando escreves os textos, escreves com mão, coração ou com alma?
VM: Com garras fortes… palpitações de sangue!
Porquê “com garras fortes”?
VM: Porque dentro de mim mora um ser feroz e fratricida como um lobo.
Se tivesses a chance de ter uma sentada com Deus, o que gostarias de dizer-lhe?
VM: Diria, Senhor, por que me escolheste a mim que sou escravo para ter vida?
É sabido que a maioria dos teus escritos (principalmente sonetos) expressam o amor, que palavras gostaria de endereçar a sua amada?
VM: Amo-te tanto, meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade..
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.
Amo-te afim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.
Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.
E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo, de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.
Em jeito de fecho da nossa conversa, que palavras deixas para o nosso auditório?
VM: Não há nenhuma razão no mundo para deixar de amar…o amor proclama a miséria e a grandeza de quem ama!
Entrevistado por:
Síul Leumas
Referências bibliográficas
MORAES, V.( 1954), Antologia Poética,
Editora A Noite, Rio de Janeiro;
MORAES, V. (1956), Novos Poemas II, Livraria São José – Rio de Janeiro;
MORAES, V. (1957), Livro de Sonetos, Livros de Portugal – Rio de Janeiro.