Entrevista a José Craveirinha: Conversas d’Além-Mundo



Entrevista a José Craveirinha: Conversas d’Além-Mundo
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Saudações, o nosso convidado de hoje é José Craveirinha (1922-2003), considerado poeta-mor da Pérola do Índico (Moçambique). É ícone de uma poesia de combate. Um sujeito engajado à causa da liberdade humana. É autor de diversas obras tais como Xigubo (1964), Karingana ua Karingana (1974), Cela 1 (1980), Maria (1988) e Babalaze das hienas (1997), etc. E, Craveirinha foi também galardoado com o maior prémio de literatura em português – Camões de 1991.

Craveirinha, bem-vindo, pode apresentar-se? Há os mais novinhos que não lhe conhecem, sequer ouviram falar de si.
– Quem eu seja ainda não sou
mas o destino também sabe
que não deixo de ser o que sinto.

E o que sente que é?
Sou daquela raça
dos revolucionários mais perfeitos.

Há uma raça que seja de revolucionários mais perfeitos? De que raça fala?
– Raça
dos revolucionários mais puros
no amor à beleza feminina
na adoração pelas crianças
no respeito pela velhice
no ódio à mendicidade.

E donde vens ou vem esta tua raça?
– Vim de qualquer parte
de uma nação que ainda não existe.
Vim e estou aqui!

O que veio cá fazer?
– Gozar o sol
prostrado no meio da boca
e ouvir-lhe as doiradas estalactites retinindo
no âmbar dos dentes fazendo escorrer
o mel do Verão das espáduas no motor das mãos
em rali de carícias santo-e-senha
dum tigre de rosas em conta
a uma bem dada.


Falemos doutra coisa. Como eram as amizades na sua mocidade?
– Os amigos
eram falsos como judas.
Ah, como judas, não.
Judas arrependeu-se.

E então, em meio a esta gente falsa, como escolhia seus amigos?
– Os amigos (eram) minuciosamente bem escolhidos.
As conversas prudentemente sussurradas.
Uma necessidade imperceptível a desconfiança.

Mas, decerto houve um ser em quem pôde confiar. O cepticismo chama-me a crença de que pelo menos houve a quem contar alguns seus segredos, medos e angústias. Quem foi?
– Minha Maria, melhor do que ninguém.
(…)

– Fale um pouco dela?
– Ninguém imagina
quanto me dói cada indiscrição
acerca da Maria.

Mas, porquê não consegue descrevê-la?
– Maria era assim simples no que dizia.
O que ela pensava era também assim.
Tudo à sua volta era mesmo assim.

A considera, hoje, uma grande mulher?
– Não foi apenas só depois
do infinito deserto de silêncio
que da Maria se falou bem.
(…)
já todos a enalteciam
e lamentavam.

E de que se lamentavam?
– …do meu sentimento
no cadinho
do luto.

Havia também palavras de consolo nesse momento de luto? Quais palavras ainda hoje te marcam, ouvidas, na morte da Maria?
– Não há morte
quando se viveu
a face da vida que se quis.

E elas te consolavam de facto?
– Muito para lá do imaginário
bom seria que nunca houvesse
a mais ínfima razão
para esta maneira
de evocar Maria.

Porquê?
– Só um choro em seco
põe no vértice da minha dor
o mais intenso
auge do luto.

E se a Maria te surgisse nesse instante, sei lá qual fosse o milagre que a trouxesse, o que a dirias?
Querida:
Deixa-me beijar-te agora.

Então os beijos são o que te tanto te faz falta na Maria?

– Beijos.
Carícias.
Este infinito sentimento
no recíproco amor homem e mulher.

Em tanta solidão que se demanda das saudades da Maria, acreditemos que te esteja a escutar ou ver-te de onde esteja agora. O que gostava de dizê-la?
– A tua imagem
é o nitrato nas minhas falanges
nas noites em que o mundo a toda à volta
mede-se na solidão obcenizada.

Que profundo pesar ainda tens pela morte da Maria!
– … é minha indignada
mesquinha forma de sofrer.

Os poetas têm uma singular compreensão do amor. Para si, como se definiria o amor?
– Entre esta ingénua pergunta
e os conceitos do mercado comum europeu
apenas sei que os (…) beijos
exportam os meus nervos
para o fim do negócio
em crise.

E quanto a liberdade?
– … a liberdade é uma dialéctica
extensão do autentico amor.

Falemos agora de Deus, o Ser Supremo, acredita que ele existe?
Não sei se existe Deus.
Mas se Deus existe
Ele está com toda a certeza
a comer comigo esta farinha
no mesmo prato.

Pelo senso de altruísmo que do teu eu se emana, vejo que não mede esforços quando o assunto é justiça ou direitos dos homens e do cidadão…
Dou-me em troca de mil crianças felizes
Nenhum velho a pedir esmola
Uma escola em cada bairro
Salário justo nas oficinas
Filas de camiões carregados de hortaliças.

Encontramo-nos numa época em que todos os problemas do Homem são debatidos nos meandros da ciência. Uma época em que é nela que se faz todo apelo à solução de todos os males humanos, ao seu ver é legítima essa exaltação da ciência?
– Quando
o problema número Um é milho
o cientista em vez de inventar farinha
produz a fúria dos átomos.

Pois é. E assim caminha a nossa civilização. Os homens morrendo de fome em meio a este todo aparato tecnológico. Será que a dita era tecnológica é uma bênção ou um maldito diabo para os próprios homens?
– Antigamente
(antes de Jesus Cristo)
os homens erguiam estádios e templos
e morriam como cães.

Agora…
Também já constroem Cadillacs.

De que tipo de música gosta de ouvir?
– … eu compreendo ao longe Mozart
mas sinto mais o que me diz Fani Fumo
e o que Miriam Makeba canta.

E
Constantemente
Entro em diálogo com a magia dos tambores.
E tu?

– Para mim depende. Gosto do que me toca lá na alma e faça levitar o meu juízo.


Fim!

Referências bibliográficas
CRAVEIRINHA, José. Obra Poética. Maputo: Direcção de Cultura da UEM - Imprensa Universitária, 2002.

Por: Daúde Amade
Fernando Absalão Chaúque

Professor, escritor, poeta e blogueiro. Licenciado em Ensino da Lingua Inglesa. Autor de ''Âncora no ventre do tempo'' (2019) e co-autor de ''Barca Oblonga'' (2022).

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