Romance (in)esperado: um amante de longa data - para “Contos do Nascer da Terra (1997)




Romance (in)esperado: um amante de longa data - para “Contos do Nascer da Terra (1997)
Créditos da foto Aqui

Incrivelmente temos a mesma idade, isto é, literalmente não se trata de um caso de abuso e/ou violação de menores, o que me deixa contente. Confesso que não foi necessariamente amor à primeira vista, mas admito que nos “imanizamos” por algum motivo: a busca pela minha proficiência literária.

Verdade seja dita, eu já me tinha envolvido com outros textos, naturalmente, em primeiro lugar os que estão rotulados duplamente nos manuais escolares e na memória de muitos rapazes da minha era (1997), particularmente no Ensino Primário. Degustei-me daqueles textos, tentei imaginar vozes para as imagens que apareciam naqueles textos; tentei imaginar imagens, caras dos personagens, dos narradores; tentei imaginar o que faziam aqueles personagens depois do ponto final de cada texto; tentei saber de onde vinha tanta mestria e elegância dos narradores heterodigéticos para de longe contarem contos tão apaixonantes; uma imaginação sem precedentes. Foi um período surreal do qual me recordo num lamber de dedos sem qualquer azáfama.



Embora tenha passado por essas relações de amizade com tais textos e outros mais que compõem os manuais escolares usados pelos meus pais e outros tantos religiosos, foi com “Contos do Nascer da Terra” de Mia Couto que sinto que a vontade de mergulhar nas letras se tornou maior, um romance (in)esperado.
Por baixo de um sol escaldante, fui à prateleira de uma das bibliotecas da Cidade de Maputo e procurei por um livro, qualquer que fosse, era a primeira vez que procurava por um livro que não fosse necessariamente científico. Os meus olhos viram diversos temas bastante sugestivos e as minhas mãos sentiram as curvas e as poeiras de um e outro livro, espirei, mas continuei. Bem no fundo da prateleira tinha um livro pálido, aparentemente velho e que carecia de manutenção, segurei-o, logo senti um arrepio. Eu disse que senti um arrepio? Perdão, exagero meu, escrevo-vos do Polo Norte, um ar frio passou por aqui há pouco...

Continuemos!

Levei aquele livro velho à uma das mesas da biblioteca, apreciei-o e ele pediu que o lesse. Fi-lo sem qualquer experiência no assunto, quase virgem, então ele mesmo ajudou-me a lê-lo, uma conversa estonteantemente angelical, uma conexão agradável, senti frios quentes, calor na neve, barulho no silêncio, mel nas palavras, vida nas acções... Li-o, li-o, apaixonei-me por ele, dei gargalhadas, emocionei-me até o fecho da biblioteca. Esperei que todos os outros utentes saíssem, queria lê-lo um pouco mais, mas tinha que parar, então olhei fixamente para o índice, fotografei-o com os olhos, olhei profundamente para a capa que já estava tão gasta e roída, outrossim fotografei-a, tinha que fazer aquilo para o reconhecer no dia seguinte ou numa próxima ocasião, em breve. Tinha tido um encontro com uma relíquia!


“Contos do Nascer da Terra” apresenta uma série de contos que têm à mistura situações hilariantes, típicas da sociedade moçambicana, situações que nos convidam à reflexões atemporais. Ensina a dar valor ao endógeno, a respeitar o ambiente familiar, a ser mais atento ao que ocorre à nossa volta. Um tesouro!

Na ocasião seguinte, não encontrei o livro nem na mesma prateleira nem em qualquer outra. Entristeci-me por pensar na possibilidade de não o ver novamente e, de facto, até hoje não mais o vi naquela biblioteca. Posso até ler outros exemplares, mas preferiria aquele roto, velho e bom amante, o meu exemplar predilecto de "Contos do Nascer da Terra". Em todo o caso, o conteúdo é o mesmo, o importante é lermos os livros, vivermos o momento da leitura, reflectirmos e produzirmos sobre eles e deixá-los nas prateleiras correctas para não sermos um entrave nos encontros entre o objecto de leitura e o leitor!

                   Por Jaime Silito Bonga
Fernando Absalão Chaúque

Professor, escritor, poeta e blogueiro. Licenciado em Ensino da Lingua Inglesa. Autor de ''Âncora no ventre do tempo'' (2019) e co-autor de ''Barca Oblonga'' (2022).

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