Um Bêbado Herói - Crónicas da Sexta-feira


Um Bêbado Herói - Crónicas da Sexta-feira

As luzes do céu se apagavam quando, depois de uma guerra fria, consegui um lugar no primeiro assento do chapa. Só não viajei inclinado porque prometi ao cobrador que pagava o dobro do valor. O infeliz cedeu porque insisti. Mas os seus olhos fumados davam a entender a quantidade de nervos que saía pelas narinas sempre que se acidentasse com os meus óculos, pois vontade era de entulhar mais quatro famintos de transporte naquele espaço.


De vez em quando, corajoso, fitava-o fora das lentes, como quem pisca para uma mulher bonita solta na rua. Nem devia fugir daqueles vidros, mas porque os óculos não eram de vista dificultariam minha investida. Os nervos do rapaz aceleravam sempre que nos encontrássemos com paragens fartas de gente. Aqueles eram piores encontros que tivera na vida, acredito. Já chegávamos na Sabrina, na Av. Eduardo Mondlane, quando sua voz decidiu parar de murmurar.



- Avayenchi lesvo. Loku vanu vani mali vo kwela táxi.

Fingi não ter percebido, embora bem soubesse que ele dizia não ser admissível o que fiz, pois quando as pessoas têm dinheiro o melhor é recorrerem ao táxi.

O meu fato azul-celeste, gravata branca e camisa vermelha encarregaram-se de mostrar-lhe que só Camões saía da minha boca, juntamente com os seus poemas.
Afinal, ainda que roto nos dentes podia aventurar-se pela língua lusa:

- Isso é spidar aqueles que estão a djobar. Vocês passeem mas não estragar trabalhos dos outros.

- Estás a falar comigo? - intimidei-lhe com um sotaque arranhado.
- Unganitxaviseli - retorquiu, mas não de imediato. Fez-me antes uma leitura diagonal. Atreveu-se, a posterior.
O chapa já tinha dado costas ao Xima quando lancei-lhe, num abusivo tom:

- Não me abusa, sabes quem sou eu?
Os murmúrios vieram de toda a parte. Menos gente para descer, constatei, enfim, irritado. Pois já não me era segura aquela luta e ganhava, pouco e pouco, voos altos para as minhas asas.
- Alguém desce? - o coitado cantava já pela centésima voz. Desde que partimos da Baixa, para além de medir forças com meu semblante cinzento, perguntava isso. Como que a desafiarem a sua paciência, todos olhavam-no como se o quisessem matar de desgosto. Como é possível, todos passageiros irem a Xipamanine, naquela hora, se não suficiente.

- Alguém desce?
Os quatro bancos continuaram quietos. Como nem música ali havia, a respiração das pessoas é que respondia, lá ao fundo, linguagem incapaz de ser decifrada pelo cobrador.
- Eu disse não carrega no n’wanhoka! - despejou ao motorista já inconformado, conduzindo como quem segue ao inferno.
- Alguém desce? - voltou a tentar a sorte, mas não se cruzou com ela. Não havia quem o socorresse.

- Estamos no Alto-Maé! - actualizou aos distraídos.
Uma voz, cheia do cobrador, rebateu:
- Ninguém desce, vamos embora.
Quando o chapa sinalizava para arrancar, um jovem veio a correr e bateu no carro:
- Leva, cobrador!
- Está cheio, limitei-lho.
- Suka, este vai entrar.
- O quê?
- Unga hi trapalhari... - interviu o motorista em changana, num claro acordo de guerra.
- Este jovem não vai entrar. - decretei, mesmo ciente de que entrava num confronto desleal.
- Abre lá isso e deixa essa ai. - ousou o jovem, sem desprender a porta do cobrador.


Eu não sabia ao certo que norteava a minha casmurrisse. Mas sabia sim, o meu fato e o meu sapato não podiam ser acidentados e nem queria ser eu lá ensardinhado, lembrei. Ora essa!

- Este chapa tem lugar para quinze pessoas, vocês aumentam para dezoito e agora querem meter mais pessoas? - embrulhei-me.



Os passageiros, que pouco interviam, lançaram um grito de discórdia e pelos assentos notas negativas me foram atribuídas.
- Não quero saber.
Foi nessa altura que vi meu braço ser raspado.
- Entra lá! - desafiaram-me.
- Mas onde vai ele parar?
- No teu assento, tu podes descer. - cortou-me um dos passageiros. Os outros seguiram na boleia:
- Estamos com pressa, nós.



- Desce lá tu seu português de merda.
Olhei para trás, mas nao foi possível identificar as fontes daquelas falas, pois todas as bocas se tinham aberto ao mesmo tempo.
Foi nesse instante que a porta do cobrador voltou a raspar-me e fechou num barulho mais forte que um estrondo.

Contive-me, afastando as pernas e sacudindo o casaco de vez em quando. As gotas de cerveja que o jovem segurara saltavam à roupa. Numa dessas vezes, o motorista parou bruscamente, quando outro chapeiro fez-lhe ultrapassagem e o líquido desceu-me com intensidade. E me rebelei de facto:

- Puta que pariu, lavas-me o fato. E o fazes hoje!
- Desculpa, boss.
- Não, não, não...
Limpou-me com a mão e renovou o pedido de desculpas. Pela janela desfez-se da garrafa e repetiu o pedido de desculpas ao minuto, até o Xipamanine todo ouvir. Teve de ser o primeiro a descer, para que, finalmente, seguisse a minha sexta-feira que só estava a começar. De repente, um vento sacudiu-me o bolso.



- Peço dinheiro. Eu disse para pagar antes, queremos virar - violentou-me o cobrador na altura que meus movimentos confirmavam o mau agoiro:

- Tiraram-me a carteira e o telemóvel aqui.

- Foi aquele bêbado - gritou uma senhora, também abondanando o chapa.
O bêbado, entre bacias e caixas, escapulia-se para o escuro adentro.
- Estás a ver, roubaram-te por gingar. Da lá dinheiro ai - insistiu o cobrador sem pena.
Era como se me tivessem arrancado a vida. Estava nu de alma e sem saber em que criatura tirar outra. Continuei ali estático, feito um poste de energia sem iluminação.
Foram os piores 10 minutos da minha existência, ou menos. Dei um passo a caminhar para o nada, a direcção é que me conduzia, eu não ia a nenhuma direcção. No meu segundo passo, uma mão cheia de areia coçou-me as costas. Virei enquanto preparava um golpe de mestre.

- Aqui está a tua carteira e o teu telefone. - disse o bêbado, batendo os objectos na minha mão.
- Estás todo a sangrar o que houve? - perguntou alguém da pequena multidão que assistia a minha ruína.
- Tive que lutar com eles... lá no beco eram muitos.
Abracei-lhe cheio de força, sem me ofender com o sangue que me pintava o fato.
- Que queres como recompensa? - chutei, indeciso do que devia dizer.
- Que trates os outros como se fosses a ti próprio. - apelou o rapaz, desaparecendo na multidão.




Elcídio Bila

Fernando Absalão Chaúque

Professor, escritor, poeta e blogueiro. Licenciado em Ensino da Lingua Inglesa. Autor de ''Âncora no ventre do tempo'' (2019) e co-autor de ''Barca Oblonga'' (2022).

1 Comentários

  1. Finalmente, encontrei o meu antídoto...viciaste-me e depois abandonaste-me... A cada sexta-feira vasculhava o teu facebook procurando aquelas crónicas que me prometeras... Afinal estás aqui, exibindo a tua fatiota azul?!

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