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Arrumava a bolsa quando o meu chefe, naquele grito irritante, sacudiu-me os neurónios:
- Sofiaaaaa!!!
Nunca tinha sentido o meu nome tão feio em todos os meus vinte e três anos. Aquele senhor amalfanhava tanto este doce substantivo, principalmente agora que o expele com coisas rebolando na boca.
Entrei na sua sala. O coitado nem se dignou a deixar que o lanche desaparecesse pela boca:
- Arranja-me um modelo de relatório de contas.
- Para quando, boss?
- Para ontem...
Dei meia-volta. Mas já não via secretárias e estantes à minha frente, apenas uma nuvem escura me inundando a vista. Quase rasguei a blusa quando atravessava a saída. Estava cega para os limites. Aliás, os meus limites tinham vencido.
Sentei-me à procura do maldito modelo de relatórios. Minto. Procurava, naquele rebolar de mouse descontinuado uma desculpa pela demora em sair do trabalho. O computador estava cheio de documentos, mas nenhum deu a resposta que precisava. Decidi optar pelo mais fácil. Abri a cortina e num gesto aéreo pedi que o meu esposo aguardasse. Ele acenou em concordância e logo cobri a janela projectando-o um beijo de consolo que logo arrefeceu ao me recordar da espinhosa missão.
Antes mesmo de palmilhar pelas pastas soltas no desktop, ouvi aquela voz rabugenta a soltar mau cheiro pelo escritório novamente.
- Sofiaaaaa!!!
Corri para sua sala, desgovernada.
- Prepara-me um café.
Dei-lhe costas e um silêncio aniquilador serviu como perfeita resposta.
- Com muito açúcar – bufou.
Furei a porta e caminhei direitinha para o inferno. Depois que cumpri com o seu capricho voltei-me ao trabalho, aliás, ao poço do mal-estar. De repente, uma luz encandeou o meu cérebro e lembrei-me que na vida daquela empresa nunca tinha feito um relatório de contas. E para quê seria naquele início de noite de sexta-feira? E porque toda a semana o desgraçado não se recordou dessa missão? Ou melhor - continuei me agredindo - porque não contrata uma contabilista de uma vez por todas?
Há três anos que sou secretária, administrativa, estafeta, contabilista e, quando lhe apetece, tenho que lhe dar ouvidos para conversinhas baratas. Com certeza, numa fiscalização do Ministério do Trabalho saía heroína.
- Sofiaaa!!!
Assustou-me o verme. A sua voz era a última que queria ouvir naquela hora. Já não aguentava o digerir, mas, uma vez mais, levantei-me para o aturar:
- Boss?
- Sofia, até que fim. Não sabia que era tão difícil atravessar da tua sala para a minha.
Fingi ter sorrido. Só um parvo quanto ele não percebeu que eram lábios mascarados. Sentei-me. A longa espera foi interrompida, finalmente:
- Que fazes ai?
- Seu tonto – essa devia ser a resposta. Mas poupei-lhe do elogio: a fazer o relatório...
Como que a se lembrar, levantou-se e atirou palavras ao alto:
- O que vais fazer hoje?
Encolhi-me. Os ombros fizeram um belo espectáculo.
- Estás mal disposta?
Vontade era sumir dentro de mim mesmo, para aqueles olhos de gala-gala pararem de me despir.
- Estou com pressa. Tenho de terminar o relatório – atrevi-me.
- Ah, meu bem... esquece isso. O que acha de irmos apanhar ar, não sentes calor?
- O quê? – explodi.
Tratou-se: falo de irmos a uma reunião.
- Esta noite? – despertei-lhe.
No lugar da voz passei a ouvir o seu cheiro acre, cada vez mais perto e cada vez mais insuportável. Não levantei o pescoço para não me desiludir. Mas quando o fiz, a sua cabeça ampliada estava prestes a deitar-se no meu queixo.
Atirei-lhe uma bofetada sem medidas. Seus óculos voaram à 100 por hora. O homem ficou sem norte, com os cabelos escassos em pé.
Já atravessava a saída quando se atreveu a chamar por mim mais uma vez.
- Sofia!
Travei, mesmo já sem freios. Mas não me dignei a virar os olhos.
- Estou orgulhoso de ti.
Ainda digeria o dito quando se soltou novamente:
- Esse era o teste que queria para poder partir em paz.
Não me contive. Queria engolir o seu semblante para saber se saciava ou não. Parecia falar algo sério, embora revestido de estranheza.
- De que estás a falar?
- És minha única herdeira e eu estou com uma doença crónica que me leva dentro de dias.
- Herdeira? - assustei-me.
- Sim. Tu és minha filha.
As lágrimas atropelaram-me o pensamento e as palavras. Ficámos aos soluços, entre abraços que significados naquele momento não contavam. A novela só terminou quando me recordei que o meu esposo ainda estava lá fora.
Elcídio Bila