- Psiu!
Vontade de virar o pescoço anda tão perto, mas não me compadeço nem pouco com tamanha infâmia.
- Pssssiu!
Insistiu o rapaz. Só pode ser um mimado, condenei-lhe. Merecia, mais é, e de forma acertada, a minha ignorância. Quanto descrédito!
Curiosamente, não mudei nem o estilo nem a pressa. Continuei andando, apenas atento às pedras desenhadas na rua, pois os sapatos altos não costumam resistir a fúria de um asfalto doentio.
Vontade de virar o pescoço anda tão perto, mas não me compadeço nem pouco com tamanha infâmia.
- Pssssiu!
Insistiu o rapaz. Só pode ser um mimado, condenei-lhe. Merecia, mais é, e de forma acertada, a minha ignorância. Quanto descrédito!
Curiosamente, não mudei nem o estilo nem a pressa. Continuei andando, apenas atento às pedras desenhadas na rua, pois os sapatos altos não costumam resistir a fúria de um asfalto doentio.
- Pssssiu!
Engulo esses chamamentos com tamanha amargura. Minha testa franja, meus dentes mordem-se... Vontade era de lançar-lhe um insulto de tamanho do trovão. Continuei educada, como uma dama que se preze. A minha saia ia ondulando, não era segredo, mas não deixava de ser respeitosa.
- Psssssssssssssssiu!
O tom daquilo piorou. Agudou e perdeu estribeiras. Era mesmo altura de colocar ordem naquela boca mal criada. Virei-me cheia de palavras nojentas, que se esfumaram logo que vi o tipo: um chocolate com leite de um metro e oitenta, trajando um casaco de napa e uma camisa preta. Seu relógio reluzia na mesma intensidade que o colar. O carro reduziu logo que abrandei, e andamos ao mesmo passo.
- Desculpa, era mesmo para te irritar - arrancou-me o sorriso…
- Então, és especialista nisso?!
- Teu senso de humor é que não é fraco.
- Eu não estou a rir.
- Ainda não.
Calei-me. Na verdade, deixava meus olhos falarem. Era tanta informação por processar ao mesmo tempo. Não sabia se olhava para o seu carro ou para ele. Eles competiam: um mais bonito que o outro. Tratei-me:
- Estou com pressa, deixa andar...
- Levo-te à escola, não te preocupes.
- Eu não vou à escola.
- Levo-te ao trabalho.
Gostava da brincadeira.
- Não vou ao trabalho.
- Está bem, levo-te ao cemitério.
- Não sou viúva.
Rimo-nos. À espera do fim do jogo. Não tardou:
- Levo-te ao paraíso.
Achei brega, mas algo não era: a sua voz.
- Sério, tens a chave? - engoli.
- É esta - mostrou-me. Será que chama de paraíso à sua casa, questionei aos meus botões. De repente, o carro parou totalmente. Abriu a porta e seguiu-me, como quem quer atingir a meta. Parou a minha frente e cobriu-me toda, logo confirmei a sua altura. Levou-me ao colo. Não sabia se lutava ou, feito bebé, dormia.
Fingi não gostar:
- Não faz isso.
Abriu a porta, depois de me ter deixado aterrado. Enquanto uma mão abria a outra protegia a provável fuga. Entrei, cheio de minhocas na cabeça.
Pôs o carro a funcionar, e eu desliguei-me.
- Para onde é que te levo, mesmo?
- Para o paraíso - brinquei.
Andou de vagar, não sei se a fazer charme ou à espera que os meus pontos cardiais funcionassem. Ele já estava no Mercado Mahlazine, dividindo o volume de “Dona Cila”, de Maria Gadu - música a qual escuto com alma - com a bagunça que as colunas das barracas provocavam.
Parou naquele emaranhado de chapas que vai a Zimpeto, outros a Museu, outros a T3, outros como eu, sem saber para onde ir. Na verdade, eu já não sabia. Tinha a minha mochila com cadernos, mas já tinha perdido as coordenadas da faculdade.
- Estou a espera, princesa. Interrompeu-me a meditação.
- Segue para onde quiser, às rodas não te obedecem? - atrevi-me.
- Queres mesmo ir ao paraíso? - testou-me.
- Porque não? - entreguei-me.
Silenciosamente, virou o carro em direcção a Magoanine. Seguiu a estrada como quem segue um cortejo fúnebre. Que comparação azeda! Rectifico-me: como quem segue um cortejo matrimonial. Faltavam buzinadelas e jogo de luzes para completar a fara.
Sentei-me como se fosse eu a noiva, sorrindo pelo que não sabia, mesmo sabendo para onde ia naquele início de noite. Vezes sem conta roubei-lhe com os olhos. Estava sereno, um verdadeiro galã. Os galãs também violam e matam, despertei.
- Onde fica o seu paraíso?
- Já já chegamos - tranquilizou-me. Tentou. Explodiam algumas granadas no meu peito.
A faculdade já não me preocupava. Toda aquela semana nenhum professor se dignou a por os pés, não seria esta a sexta-feira do milagre. Mas, por outro lado, preocupavam-me uma data de coisas. Resumo-a: a minha ousadia.
Depois de contornar a rotunda, seguiu por mais alguns metros e depois entrou à esquerda, deixando o asfalto. Estacionou numa entrada, à espera que alguém o socorresse.
- É este o paraíso? - perguntei com excesso de calma.
- Advinha.
- Laulashild - acompanhei o letreiro brilhante.
A porta abriu.
- Espera! Interrompi a marcha.
- Sim, é este o paraíso.
Aguardei por mais benesses, talvez flores, chocolates ou mesmo rebuçados, em forma de palavras, mas ele encolheu-se. As rodas, essas sim, falaram palavras que o asfalto logo ficaram seduzidas e permitiu que as beijasse pelo quintal adentro.
Travou no carro e silenciou o ronco do motor. Só não silenciou as incógnitas que pairavam no meu cérebro.
- Volto já - deixou-me com a reclamação na ponta da língua.
Cara sem vergonha, voltou acompanhado de preservativos e um linguajar vadio:
- Vais gostar, gata.
- Não vou - sacudi-lhe.
Abriu-me a porta. Não me intimidei com os seus modos cinematográficos:
- Não vou à lugar nenhum.
Não sabia ao certo o que dizia. Aliás, não sabia mais quem eu era: prostituta da esquina ou futura de esposa.
- Olha para isto - intimidei-lhe.
- Vi há muito tempo. Sou detalhista.
- E isso não te chamou atenção?
- Gosto de mulheres comprometidas.
Bati o sacana sem força.
- É de noivado, não é?
- E caso-me para semana.
- Ainda há espaço para me convidar?
Tirei o anel e deixei no seu porta-moedas.
- Não, não, não...
Desafiei os meus instintos e desci do carrão. Desta vez não me levou no colo. Ainda a furar a porta 25, explodiu:
- Ganhei a aposta.
- Que aposta? - fiquei burra.
- De que toda a mulher não presta.
Acendeu a luz. Não foram os raios da lâmpada que me fizeram perder os sentidos, mas o meu noivo, algures naquela cama grande. Como que a sonhar, ouvi-lhe sussurrando:
- Realmente, não prestam.
Não era paraíso coisa nenhuma, era sim o inferno. A frase repetiu-se muitas vezes no meu cérebro. Abri as comportas do meu coração quando ele se levantou cheio de raiva:
- Eu não te amo, minha mãe foi quem me obrigou a aceitar casar contigo.
- Eu também - ripostou, enquanto atirava a porta na minha cara.
Elcídio Bila