Edição: Rodolf Pondja |
Nada me dói. Se doesse, chorava. Ficava tímido entre estes dois sovacos. Quando fico introvertido, braços e pés encomodam-me. Só que isto não me dói. Ontem, quando tomava duche, arvorei meus braços e atravessaram o teto. Temi. Não pelo que estava acontecer de meus braços ganharem extensão. Temia a mim mesmo porque na hora deles encolherem e abrirem o chuveiro quis debater-me ao chão. Meus pés ficaram pendurados no chuveiro de tanto susto. Mas eu não agia. Tudo só sentia.
Cheguei a abrir o velho chuveiro. Sem boca; perdera-o. A quem se banhava, a água molhava pela garganta. É preciso não respirar para aguentar um duche neste exíguo lugar e para não chorar. Quem algo lhe dói, quanto mais respira mais chora. A vontade da água era de untar-me dos cabelos aos pés. Não foi assim. A água batia-me o coiro cabeludo e, como que hirta de hipnose, entrou-me no corpo usando o canto da porta fechada dos olhos. Daí, chorei de emoção e não vi mais nada. Porque quanto mais as lágrimas entravam com a água, mais se abriam os meus olhos. Só uma coisa molhou dentro de mim: o coração. A seguir, não ouvi mais as batidas dele. Parou estático, com cor de cinza.
Afinal a água do chuveiro era parafina. Levei minha toalha para o limpar, mas quando o toquei caiu em cacos que se esvoaçam com tanto vigor e eu já não tinha o que lutasse contra a gravidade para me deixar assente na terra. Dei-me a levitar. Quando já estava a passar a altura do chuveiro, aproveitei a pouca consciência que tinha e levei meus pés pendurados no pescoço do chuveiro. Daí, não vi nem senti mais nada. Simplesmente, dormi um sono profundo.
Acordei com a roupa toda esfarrapada. Fiz, inclusive, matraca de mim mesmo. Minha esposa já não estava em casa. Havia ido já ao serviço. Me deixou este universo. Esta casa
toda iluminada pelo escuro dos meus olhos. É uma casa de um quarto e sala. Com projecto arquivado de uma futura varanda. É um espaço livre para estar, mas uma esquadra para minha alma. Porque não gosto já deste meu corpo, alienei-me a alma aos compartimentos da casa que são sempre frescos pelas janelas que o carpinteiro teve estima em fazer.
Deixou-me riscar e riscar enquanto matraqueava de mim. Eu risquei meia parede e ele disse que no mesmo dia traria a base. Trouxe-a à noite. Quebrou a parede e montou a base. Depois aconselhou-me que lhe entregasse um lençol para fechar a abertura da janela temporariamente, até que eu tivesse dinheiro para comprar os vidros que, como disse, também me custariam muito dinheiro como a base, que nos levou uma fortuna. Mas eu não me preocupei. Minha esposa já é a diretora da casa.
Sai um pouco para a rua para ver se encontrava algum miúdo. Ao mesmo tempo que queria um miúdo qualquer para conversar, queria Kethlu. É um meu amiguinho que me faz companhia quando tem tempo. E ele costuma vir a minha casa sem que eu saísse para fora e o mandasse chamar. Mas ja havia mais de cinco semanas que ele não me vem visitar.
- Você que está a passar - desculpa, viste Kethlu?
- Não, não.
- Ah, é sô Abílio? Desculpa, achei que fosse um desses miúdos-amigos.
Eu tinha um pau de mafureira. Um improvisado andarilho. Óculos escuros que tanto gostava, oferecidos pelo meu filho Gabriel. Não sei porque este não mais me visita, desde que a esposa me entregou uma capulana para secar as mãos. Quando Gabriel, que estava naquela árvore de caju, ali, dentro do quintal, entrou na sala, sό ouvi um berro. Um berro que significava ‹‹devolva essa capulana já, papá,›› e eu não entendi nada. Foram-se embora naquele mesmo instante.
Mas eu ainda vou descobrir o porquê de sua ausência. Logo naquele dia que sua esposa me tratou bem, me dando uma capulana para limpar as bátegas de água nas mãos.
- Ei, você que está a passar, viste Kethlu?
- Está ali, no fim da rua.
- Ah, é Manuelito. Vai chamá-lo para mim, faz favor.
O miúdo foi chamá-lo. Pude ouvir seus passos se afastando. Por isso, entrei e acampei em baixo do cajueiro, ao lado da cozinha de caniço. Antes de me sentar, chutei num tombado caju. Varri o chão com as mãos, num raio de cinquenta ou seissenta centímetros e o achei. Guardei-o num pequeno plástico que tinha no bolso.
Chegaram, o miúdo e Kethlu.
- Olha, antes de te ires embora, m'fana, toma cá este caju. Acaba de cair.
- Obregado, tio.
O miúdo era novo na zona. Mas ainda muito miúdo. Mas tinha já planos de o tornar meu amigo. Quem sabe passaria a vir cá à casa com o Kethlu e a conversa ficava ainda mais interessante. Arrancariam muitos cajus aqui e fartarmo-nos-iam até não mais aguentar.
Antes de se sentar, Kethlu achou melhor trepar a árvore primeiro para, enquanto conversássemos, matarmos a fome. Eu não me quedei em ciclotimia. Enquanto ele arrancava cajus lá no cimo da árvore, eu ia varrendo o chão com os dedos. Mas me coarctando nos receios de chegar distante, onde já não seria em baixo do cajueiro. Tivemos pouco mais de duas dezenas de cajus. Sentámo-nos e conversámo-nos numa conversa insilenciatória. Em que cada silêncio era tapado por pás de palavras.
Tenho a certeza - certeza porque este miúdo sempre foi assim, antes de eu perder a vida do brilho ou o brilho da vida – de que a cabeça de Kethlu estava entornada para o lado esquerdo, mas, quando ele sorria, levantava a cabeça numa bruscalidade e nuns ciclos do sol ou lua que so se vêem pela metade. Espáduas para baixo, não por timidez, mas pelo conforto com que salpicava a conversa. As pernas estavam ambas na areia, bem estendidas, enquanto seu tronco era, por trás, sustido pelos braços, cujas mãos estavam retas, travando seu corpo na areia. Os pés, abanavam-se ora para esquerda ora para direita, como que se limpassem um vidro no ar.
- A escola como vai?
- Ah, vai andando. Com dificuldades, na verdade.
- É assim. A vida não é difícil. As escolhas boas é que o são.
- É.
- Mesmo matando sede. Às vezes, você bebe água e ela sai pelas narinas e, quiçá, vai parar no hospital. Ou sai a rua e cumprimenta alguém e só por isso cria problemas porque talvez a pessoa não ouviu bem ou reproduziu inconscientemente um insulto que ouvira anteriormente. A vida é simples mas nunca é exacta.
- É verdade, vô.
- Mas você nunca me diz nada. Vive acanhado. Sozinho. Mas nao podes –
- Venho, vovô.
- Vens poucas vezes. Sabe, quem fica sozinho vive completamente sozinho. E fica maluco. Se agravar, levamo-lo ao hospital psiquiátrico -
- Não vou ficar maluco, vô. Garanto. Me divirto muito.
- E lá no hospital cada maluco tem o seu mundo, sabia? Dois malucos não brincam juntos. Já viu dois malucos juntos? Se sim não eram malucos, foram confundidos com vagabundos da realidade.
- Não, nunca vi.
- Cada maluco tem o seu mundo e no seu mundo só há ilusões.
- Vô, a mãmã está a chamar-me.
- Vá. Vá logo. Depois volta.
Restavam cinco cajus quando Kethlu se foi. Levei-os para dentro. Meti-os num recipiente com feição de cesto. Retangular, vermelho, com pequenos desenhos. Havia espaçamento, ou buracos, dentro dos desenhos e fora. Era onde púnhamos pão. Mas não compraria pão nesse dia. Quando acordei passei a mão por toda a mesa e não ouvi nenhum tilintar de moedas.
Comecei a sentir fome. Fui procurar restos de comida do dia anterior e os aqueci na cozinha. Se não tivesse gás, teria de fazer carvão ou procurar lenha no terreno ao lado, onde por vezes apalpo cafuros e cascas de lanho. Diz um adágio que matapa é como xiguinya, sabe mais no dia seguinte quando já pouco sobra. A matapa não era muita mas deu para encher a pança. Sai do interior da cozinha, que ficava, ao lado da casa, para dentro de casa e comi um caju.
* * *
À tardinha, ao crespúsculo, veio Kethlu de volta. Tivemos a ideia, após, comermos dois cajus cada, de chamar Manuelito para juntar-se à nós na assadura de castanhas. Oitenta e seis castanhas, como quantificou Kethlu.
Foi e voltou com Manuelito sem demora.
Procuraram lenha no terreno ao lado. Quando era já suficiente, assámo-las. Dividí-as em quatro partes. Deixei a quarta parte para Jertrudes.
Já era noite. Apalpei as paredes até achar os interruptores e liguei a luz que fica logo acima da porta para iluminar o quintal, liguei as luzes da sala e do quarto. Fiquei à espera de Jertrudes. Fiquei à espera de Jertrudes até me cansar. Eu não sabia que horas eram mas era já tarde. Coarctei-me em ver noticiário pós-laboral. Este terminou e começou uma telenovela que Jerdrudes fazia muita estima em ver. Mas, em contrapartida, ultimamente chegava tarde. Eu esperei. Eu esperei. Nada de Jertrudes. Tranquei as portas. Se Jertrudes era a diretora da casa, eu era o fiel então!
Jertrudes pediu licença. Eu não abri. Jertrudes pediu licença. Eu não abri. Fui à sala. Liguei o televisor de novo para aredondar a hora. Era já tarde demais. Havia cinco semanas que Jertrudes chegava tarde a casa.
- Abre a porta Joaquim.
- Não abro, não. Volta para onde estavas.
Continuou a bater na porta. Cada minuto que passava, ia batendo com mais força. Eu não abri.
Foi ter com dona Zita. Com um pastor da zona. E com um irmão dela que morava dois quarteirões da nossa casa.
Ficaram todos a murmurar, ali, no quintal de casa. Eu, dentro, comecei a comer as castanhas que havia deixado de tarde. Comia-as vagarosamente. O irmão dela aproximou-se da porta e disse:
- Siva, vamos conversar.
- Não vou conversar com ninguém. Diz a sua irmã voltar para onde estava - respondi.
- Siva, não seria mais fácil continuarmos com esta conversa aí dentro?
- Se quiser conversar, que seja vocês estando aí fora e eu, aqui dentro.
Calaram-se por um tempo. Depois, começaram de novo a resmungar. Já debaixo do cajueiro. O irmão, que foi sempre intrometido, procurou cajus em cima da árvore e começaram a comer. Deve ter deixado cair um montão de folhas pela forma como subiu.
Resolvi dexá-los entrar. Entraram. Acomodaram-se nas cadeiras. Sentámo-nos todos à mesa plástico-azul que tínhamos. Desembaracei-me deles todos. Concordei com tudo o que disseram. Alguns com ares de sabichöes, ares de pessoas perfeitas, pessoas que sabiam da nossa vida. Eu tinha um propósito e todas as falas não me interessavam. Meneei a cabeça até irem-se embora e acharem que resolveram tudo. Mas eu é que sabia o que estava a resolver.
Despediram-se e deixaram-nos sós. O irmão dela saiu a rir-se de tudo. ‹‹Não é nada, mana,›› disse quando Jertrudes lhe perguntou por que razão se ria. Dona Zita pediu que não fosse mais chamada. Porque estava cansada de nós. Ela tinha toda a razão. Estava, quiçá, a ser usada para criar bem estar numa casa quase todas as semanas e , ultimamente, todos os dias. O pastor pediu para falar só comigo antes de ir.
- Não tenho nada contra ti, Joaquim. Quero dar-te um conselho: você não é maluco e tampouco sonâmbulo; quando acordar de noite, seja intuitivo mas te esqueças da razão!
- Não entendo totalmente, mas vou pensar nisso - respondi.
Logo foi ter com Jertrudes e disse:
- Seu marido apegou-se ao Hedonismo devido aos seus dias que se aproximam. Você tem de entender isso. Ontem, você pôs-lhe água na cara enquanto ele falava coisas, içava os braços e saltitava na cama.
- Eu estava a tentar acordá-lo, pastor.
- Ele quer que você o acorde doutro jeito.
- Que jeito que não entendo?
- Sabes que é culpa tua?
- Culpa minha?
- Sim. Você casou-se com ele sabendo da diferença de vinte anos que vocês têm.
Ouvi Jertrudes dizer o mesmo que eu disse: que ia pensar melhor no que acabava de ouvir. Depois os levou até ao portão. Eu estava sentado na sala. Com as mãos na mesa.
Jertrudes regressou e começou a cozinhar. Fez massa, fritou peixe e fez salada de pepino. Comemos e fomos à cama. Até aqui, as vozes estavam numa total inacção. Ela olhava para mim como se procurasse ver as imagens do que lhe estava a ser dito anteriormente. Como se fizesse uma minuciosa inspeção pelo meu corpo. Ia de um lado para outro olhando para mim sem dizer palavrinha sequer.
Jantámos (ainda sem falar nada) e fomos dormir. Embrulhei-me no sono - parece - antes dela. Acho isso porque, enquanto eu tentava sonecar, Jertrudes ia trauteando, refletindo em coisas, como se não tivesse disposição para dormir. Como se, quiçá, tivesse receio de não conseguir algo.
Perdi noção de minha fisionomia e parecia que eu ainda era discente no meandro do pensar. Eu pensava mas me dispensava dos olhos. Eu os abria e me via numa quimera, numa floresta densa, com muitos rosnares, com muitos seres inamovíveis se movendo para frente, para trás, para cima e para baixo. Tentei esconder-me mas meu corpo parecia agarrado à uma árvore mansa mas muito assente à terra. Cujos ramos iam me riscando o peito a me roçarem em simultâneo. Como se desenhassem um novo ser em mim. Como se houvesse necessidade de uma terra escondida reaparecer.
A dado momento comecei a correr sem parar e sem cansar. Nas vezes que abrandava, erguia a cabeça para ver se vinha algum animal perigoso e continuava a correr. Até que empunhei-me a mim mesmo e trepei numa árvore que albergava corujas e deixei-me estar e não mais vi necessidade de fugir. Quando acordei, vi que novamente havia perdido a visão. Que ficara cego de novo. Jertrudes já não estava em casa. Havia ido trabalhar.
Rodolf Pondja – in Amores Bem-Mal Concebidos & Outras estórias infantis