O ANOITECER DO MESTRE CAPÍTULO I - I EPISÓDIO




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Tristan...Tristan... eu estou secando, estou anoitecendo.
- Não fala besteira... reserve as poucas forças que tem. Você vai ficar bem.
- Não Tristan, é já tarde e o sol do meu peito já desponta, já chama-me ao anoitecer dos meus olhos. Infelizmente, minhas duas luas não vão acender suas lareiras hoje. Já tardo, torno-me cada vez mais breve, mais breve Tristan...sinto que o regente deste concerto chama as últimas notas da minha partitura musical. Logo soará o último movimento sinfónico e feito isso será tudo calmo, silencioso e voltarei para a quietude que acaso um dia fui.
- Mestre, eu juro que ela pagará por isso com a própria vida. A sua honra será restaurada.
- Não Tristan, muito pelo contrário. Se alguma vez me amastes ame-a de igual modo.
- Como pode me pedir tal coisa? Que ame a mulher que atentou contra vossa própria vida?
-  Ah, meu bom discípulo...como não pudestes notar que há muito morri? E assim sendo, que  crime há em atirar em um pobre cadáver? Não vejo acto ilícito na atitude de Marilha.
- Ora que grande disparate! Ainda lhe ouço a voz e mortos não falam e ao menos que assumamos como verdadeira a proposição de que fantasmas existem e existem em carne e osso considero-te vivo. Mas deixemos de filosofias... Vamos! Temos de levar-te à um médico.
-  Não Tristan, não quero que meu corpo anoiteça entre quatro paredes, sobre uma cama com cheiro a alfazema, não quero que o pranto daquele lugar profane o pueril momento da minha ida; quero pois perder no derradeiro momento  o sal da voz, o sol dos olhos sobre este manto de lírios, lótus e orquídeas; tragar sofregamente seus perfumes. Quero pois cobrir-me com a nuvem mais pura, ganhar a simpatia de uma formiga, confundir-me com tudo e paulatinamente partilhar minha noite com cada uma dessas coisas e nelas permanecer, e ali permanecer indiferente ao naco de carne se esvaziando em sangue em seus braços.
-  Não, eu desafio a sua morte, me recuso a sua ida. O senhor mesmo me ensinou que...
-  A vida é um devir constante Tristan, nunca nos vamos completamente. A rua, a pedra, a gaveta que guarda meus velhos poemas, a janela donde ainda pendem meus olhos, em tudo fiquei um pouco. Minha ida é apenas uma subtracção final desse me dar para as coisas. Se dar para as coisas é trilhar a vereda da compaixão e...
-  Isso é contraditório. O senhor vive pregando  que a ambição desenfreada pelas coisas e o desejo incontrolável de aquisição são uma faca de dois gumes que acaba ferindo quem a possui.


-  É exactamente por isso que ao invés da aquisição temos de renunciar a nós mesmos e nos dar.
- E qual é a importância disso?
-  Manter o equilíbrio. Perceba que todo Homem tem em si um lençol freático em actividade. O Homem sensato  sabe dar água a quem secou por dentro antes que ele mesmo seja um recipiente cheio, transborde e afogue sua essência. O imprudente pelo contrário, deixa que sua água  o sufoque por dentro e comete homicídio contra sua alma. A par disso, torna-se mais egoísta, mais ganancioso, o corpo continua respirando, mas é apenas um túmulo ambulante.
- Mmmm... estou confuso. Ora, se corremos o risco de nos afogar em nós mesmos se nos tornamos egoístas  e negamos a água de nosso dentro à quem dela precisa, posso então concluir que nos dar é uma questão de sobrevivência, certo?
- Não Tristan. Nos dar não é uma questão de sobrevivência, nos dar é uma questão de compaixão e equilíbrio. Lembre-se dessas duas palavras, pois a Clã Invisível irá tentar alcançar a sabedoria do SÉTIMO HOMEM e só elas o poderão salvar. Agora deixai-me partir para o lado de lá das coisas, mas não teimas que eu estarei finalmente em tudo e através da caminhada da sabedoria e serenidade que lhe instrui conduzirei seus passos.
- MESTRE, MESTRE, MESTRE... NÃO VÁ! ACORDE! QUEM É A CLÃ INVISÍVEL, QUEM É O SÉTIMO HOMEM!? RESPONDEI, MESTRE... MESTREEEEEEEE!!!


[Continua]
NOREK RED




Sobre o autor
Norek Red é pseudónimo de Kheron-Hapuch de Esperança Nhabomba, nasceu em Maputo, capital de Moçambique. É poeta, escritor, activista cultural, fundador e líder da Associação Fénix este é também o autor da Lírica Gramática (2015), sua obra de estreia e dos tautoindrisos, uma nova modalidade poética por si criada, nascida da sua crença quanto a necessidade de empreendimento de ousadia e criatividade no mundo artístico. Actualmente é também educador de desenvolvimento comunitário licenciando em Sociologia pela Universidade Pedagógica- UP-Sede.  


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