- Vamos ver filme mais logo. A Lusomundo vai estrear “Aranha-céus – coragem sem limite”, de Dwayne Johnson. Aquele actor de Fast and Furious, que mais gostas.
Tranquei o telemóvel rapidamente como se temesse um vírus letal, antes mesmo de abrir a mensagem, apenas as letras descaíram da parte superior do ecrã, logo que coloquei meu password.
- Essa gaja pensa que sou louco, em plena sexta-feira ir ao cinema!? - desabafei com o meu colega do lado.
- Realmente, não faz sentido. Eu também não tolero isso; – amparou-me.
Ficámos quietos por um tempo que não chegou a minuto, afinal pensávamos nas mesmas besteiras.
- Qual é a dica de hoje? - agitou-me.
- A mesma, irmão. Vamos cair na Madeira. Tenho que mamar aquela kherana…
Voltámos ao silêncio, entre risos bandidos.
Eu estava muito longe de terminar o meu relatório. Mas pelo que o dia me provocava no estômago, certeza havia que ficava por isso. A cada letra que picava do teclado, via no monitor uma cerveja transpirando. Quanto mais escrevia mais cervejas choravam de saudades.
Cinco minutos passaram. Dei-me conta de que estava a escrever reboliços, nada tinha a ver com o que o chefe tinha exigido.
- Como vai, Marcos? Há dois dias que não me dás o que é meu de direito.
- Estou a terminar, boss.
Pisquei o olho para o meu colega e logo sussurrou-me:
- Estás na merda.
- Ele é quem está… - gozei.
Senti a sua sombra nas minhas costas. Peguei no emaranhado de papéis, revirei-os, fingi ler, continuei fingindo, fingi até seu cheiro desaparecer do escritório.
A gota de água que faltava apareceu quando tive que preencher uma tabela. Como se não bastasse devia fazer alguns cálculos no Excel. Eram 15h00. Da janela o movimento já se tinha iniciado. Algumas buzinas pelo meio e gente chateada com o tráfego trocando alguns carinhos. Do espectáculo, a ausência do carro do boss foi que me alegrou as vísceras.
- Este tipo já foi. – partilhei a boa nova.
Vi, de repente, um boi a pular-me ao colo. Só travei com uma secretária depois de ter cambaleado. Dispensei as dores, os motivos do atropelamento davam para alegria do que para outra coisa.
- Fecho esta tabela e logo vamos. - prometi, ainda ressentido.
- Tabela qual quê, deixa isso, Mauro.
Orgulhei-me do colega:
- Em toda a minha vida nunca tinhas dito algo que preste.
Batemo-nos as mãos mas logo nos recolhemos quando lembramos das câmeras de segurança. Sentamo-nos, mas não para continuar com os trabalhos. Estávamos, mais é, a desligar os computadores. Foi o momento que mais acarinhei o objecto que mais me coça a consciência na vida. Dei-me o privilégio de limpá-lo, antes mesmo de arrumar os papéis sobre a mesa.
- Já acionei o elevador. - gritou o companheiro.
Enquanto pegava na minha carteira, entrava mais um SMS.
- Amor não respondes? Estou quase a sair!!
Escureci o telemóvel. A cara também. Meus ossos secaram e a pele murchou.
- O que se passa, bro?
- A Maura…
- Estás mal, tens que tirar essa pedra do teu sapato.
E tirei mesmo, literalmente.
- Poupe-me desse chulé.
Sacudi o sapato muitas vezes. Chegámos no rés-do-chão ainda sem o calçar. Continuei andando, para dar espaço aos outros de usar o elevador.
- O que se passa, chefe?
- Estava a tirar uma pedra. – Respondi ao segurança aos risos.
Caminhámos em direcção à viatura, mas um vento arrastou-nos ao Mercado Povo. Não sei com que pernas, mas já estávamos na Dona Dina há duas horas. Comemos chouriço com batatas. O pretexto não era fome, apenas abafar o álcool. A viagem ainda era longa.
Escureceu mais rápido que imaginávamos. Davam-me algum cansaço aqueles copos.
- Vamos embora, a kherana já deu sinal. - despertei o colega que já estava aos amassos com a filha da Dona Dina.
- Toma mais um copo…
Antes de refilar, borbulhando, o copo aterrou-me a frente. Dei um gole de raiva e cheguei-o ao ouvido:
- Deixa essa suja, que a kherana tem uma amiga para ti lá.
- Ouvi o que disseste. – denunciou a jovem.
- Era mesmo para ouvires. – respondi, em surdina.
E como se nos comunicássemos telepaticamente, enviou-me um whatsapp a confirmar o veredicto:
- Já estamos aqui, todas para vocês.
Mostrei ao tonto do meu colega e para lhe provocar apetites, perguntei:
- Estão gostosas?
Converteram palavras em imagens. Ainda que estivessem num sítio com pouca luz, notavam-se rostos fartos de maquilhagem e cabelos pomposos. Faziam biquinhos e, lá no fundo, prometiam uma noite singular. Respondi com um emoji de coração.
- As heinekens sobem-me à cabeça, podes conduzir?
Recebi as chaves antes de me caírem e seguimos a viatura estacionada doutro lado da Karl Marx. Lá fomos nós, à velocidade do engarrafamento. Antes mesmo de chegar a Eduardo Mondlane, o meu telemóvel chamou.
- Rui Mecânico está a chamar.
- É a kherana, podes atender.
- Onde estão agora? – ouvi lá de longe, entre música alta e barulho diverso.
- Estamos a chegar, tomem algumas.
- Que resposta inteligente! – provoquei-lhe.
- Estou bêbado, mas não matreco. – Gabou-se
Parávamos em todos semáforos. Que dor! Antes de chegarmos aos da Shoprite, o colega agitou-me:
- Acelera!
Pisei o máximo a geringonça. Entre o verde e o amarelo o Vitz vermelhinho cortou a meta. Era tanta velocidade que o passageiro ficou lúcido. Foram zigues e zagues desde que deixamos Mercado Povo, com a música alta a temperar-nos os apetites.
Meu telemóvel voltou a chamar.
- Não atende, é a Maura.
- Ah, personalizaste o toque?
Aceitei com a cabeça.
Estávamos quase a passar quando o semáforo do entroncamento de Hulene-expresso sangrou.
- Ainda tens uns segundos, acelera!
Hesitei, mas, descontroladamente, meu pé caiu no acelerador feito um betão desgovernado. No momento, outro carro cortava embalado. Tentei esquivá-lo. Em vão, naveguei no escuro.
- Aqui tens a sopa de legumes que tanto gostas.
Foi um esforço perceber a dona da mão que me conduzia o líquido à boca.
- Onde estou?
Faltava ouvir novamente a sua voz para descodificá-la.
- No Hospital.
Era mesmo a Maura, suspirei de emoção.
Elcídio Bila