Chão Perdido

Chão perdido
Chão Perdido


Meditando, Tchádi dizia ‹‹como é possível alguém comprar um livro de cujo conteúdo tem conhecimento, no entanto, passado algum tempo, este é roído pelo rato que só deixa palavras que conduzem a uma semântica totalmente diferente do original e com um fim totalmente longínquo de se imaginar? Fui um parvo! Quanta ingenuidade minha confiar numa “qualquer” a ponto de torná-la minha mulher! Tive várias evidências por analisar acerca de como seria meu futuro com ela: sua forma extravagante de se vestir para se pôr a rua, até mesmo quando ia à igreja; e sua forma de falar comigo, eu nem parecia seu marido, o que fazia comigo na cama, tenho até pudor disto pensar, mas não era normal, ela me ensinava muita coisa na cama. E Roni??? Raio de filho que em nada se parece comigo. Poça! Inclusive, constatei que é parecido com o vizinho Abreu. Aliás, já nem vizinho é porque saiu daqui desta zona faz um tempão. Inclusive, sua esposa saiu antes dele logo depois de uma briga feia que teve com minha...! Cobardice e ingenuidade minha não ter feito caso da situação quando ainda era tempo...! Este era o segundo lar que Cici tinha. O que aconteceu no primeiro?››




Tchádi fez estas e tantas outras questões. Culpando-se ainda mais por estar a passar por tudo aquilo. Tchádi perdera o chão...
Assim deveras, começara o dia:
A porta estava fechada. A escuridão era eminente. O casal dormia feito anjos. Era uma forma de fingir que estava tudo bem na sua vida conjugal. Tchádi teve um devaneio em que seu filho participava outrossim.

Roni, vá dar uma vasculhada nos bolsos amarfanhados das capulanas de sua mãe e vê se me compra dois cigarros.
– Pai, ela vai precisar desse dinheiro para o vosso divórcio.
– Quê?!
Sem ouvir a resposta, Tchádi acordara e a primeira coisa que fizera foi averiguar o anel de noivado. O anel sumiu do seu dedo. Estupefacto, Tchádi encandeara o quarto de imediato. De sequente, investiu em acordar sua esposa, Cicinha. E ainda sobressalto, indagara-a:
– Cici, Cici! Tive um pesadelo!
– É pela primeira vez que tens um? Você age feito criança, sabe?! Por isso que amanhã inicio com a tramitação do nosso divórcio.
– Quê?!


De súbito, acorda de novo. Descobre que teve dois pesadelos, um em cima do outro. Teria Tchádi uma outra vida em outra dimensão? Na primeira dimensão sonha com o seu filho, em outra, com Cicinha. Embora as brigas que o casal protagonizava ante o filho, Tchádi nunca alguma vez pensara em se refutar da esposa.

Pai de Roni acreditava que tudo se ia resolver e que, além do mais, um casal que não larga o prato para se suster de pequenas brigas ao jantar de vez em vez não tem muito que fazer no quarto. Pois Tchádi também acreditava que é ferindo que se descobre a capacidade de derrube de árvores do elefante por minuto. Assim, como o próprio mundo, é imprescindível que se faça o mau uso do que ele nos oferta para ver até aonde vai a durabilidade da natureza, sabe-se que esta é uma realidade que nos assiste.
Na manhã sequente, ainda numa hora muito matutina, Pai de Roni despertara, e tratara de acordar o filho, como usual, desempenhando, assim, um papel de despertador electrónico em duas pernas. A corriqueira tarefa de Roni era de varrer o quintal e aparara catana para ir com seu pai à Machamba cortar caniço para comercializar e tindzulu para coser esteiras para a mesma finalidade.
– Filho, é hora de acordar! Roni, acorda!
– Mas, pai, ainda está muito cedo. Ainda estou com sono.
– Eu disse para acordar! Você é sempre o último a acordar, seu preguiçoso. Nem sequer te lembras dos dias que temos de ir à cata de tindzulu!  
O homem pára com o seu fremir quando ouve passos no interior do quarto: decerto que seu filho já abandonara do colchão.

Tchádi foi tomar duche e, quando voltara, viu que o filho ainda não se tinha feito fora do quarto. Houve retorno de um ensurdecedor brado. Afinal de contas, o Roni se erguera de seu leito para se vestir, entretanto, quando se sentara no mesmo para vestir as botas, foi pego por um ar de sono e não quis ter forças para resistir.
– Roni!

Estupefacto, Roni corre e abre a porta para fingir que estava pronto havia já bastante tempo. O pai quedou-se na indiferença; Roni entrou de novo no seu quarto para vestir uma camisola e, logo, sair para se despedir da mãe.
– Tchau-tchau!
– Vá com Deus. Até logo!
Lá se foram. Pai e filho, ao local onde têm cortado tindzulu. Próximo ao Rio Mulauza.
Horas volvidas, já tinham amontoado um pequeno montante de tindzulu. Embora ante si Roni tivesse uma grande ocasião de inspiração na pessoa de seu pai, este não tirara proveito. O pequeno homem trabalhava sem vontade de querer. Inspirava ar com mistura de oxigénio e no fenómeno adverso, com muita intensidade, tal que até chegava a dar lágrimas, de seu orifício bucal saía ar que sabia a letargia e nostalgia por uma caminha bem quentinha. Algum, porém, ele fazia. Ainda melhor quando às vistas de Tchádi.
– Tu disseste que querias a catana mais grande, entretanto pouco cortas! Queres trocar, é?  – disse Tchádi com ar de frenético.
– Não, – ripostou – estou a trabalhar, papá. – disse Roni, balbuciando as palavras, cabisbaixo.
– Poça! Chamas a isso de trabalho?!

Tchádi é sempre assim quando com seu filho. Querendo sempre ver Roni a se esforçar. Ainda quando a caminho do ribeirinho, disse ‹‹tu és muito fraco. Tua debilidade aparta-me da clarividência de ser seu progenitor››. Di-lo por ele possuir braços musculados e Roni não. A razão de Tchádi ser assim são os incessantes trabalhos quotidianos. ‹‹Mas a culpada disto tudo é tua mãe. Escassas vezes Cicinha tem feito xima, e quando a cozinha tu não comes!›› Tudo isto porque seu filho não conseguia alcançar os seus largos passos. Mesmo quando Roni corria para o alcançar, quando dava por si já lá estava, atrás.

Satisfeito com a sua quantidade de matéria-prima, Tchádi ordenara que abandonassem o local. Cada um carregaria o resultado do trabalho por si feito. Roni cortara tindzulu, Tchádi cortara caniço. O tindzulu conseguido era suficiente para duas esteiras. Ainda estava pequeno. Precisava crescer mais. Senão, daria só para esteiras pequenas, e estas não fariam dinheiro suficiente para sustento familiar. Contudo, estavam felizes. Da última vez, só conseguiram para uma esteira e tampouco conseguiram caniço.
– A mamã, num sorriso legítimo e cintilante, vai esmerar grande alegria, daquelas bem profundas, quando nos vir chegar à casa com muita palha verde, n’é pai? – disse Roni, empolgado por este dia não ser como os outros dias úteis da semana, que para além de sair horas antecrepúsculas para o trabalho com o pai, tem de voltar e, sem descansar, preparar-se para ir à escola. E, quando é dia de final de semana, tem de coadjuvar sua mãe nos trabalhos domésticos e, de seguir, auxiliar o pai no entrançamento de esteiras. A pergunta não teve resposta.
Não obstante, Tchádi urdiu raciocínios sobre uma das palavras ditas pelo filho: ‹‹legítimo›› a verdade é que esta palavra se lhe remontou a discussão que travara com Cicinha havia doze anos. Era sobre a legitimidade de Roni. Cicinha uma vez zangara-se com Tchádi por este ter pernoitado fora de casa e tendo voltado no dia seguinte sem nenhum valor monetário, quando no dia anterior tinha saído com vinte dezenas de meticais. Cicinha disse, possuída pela frustração, que o filho de que esperava não era de Tchádi. Com muita dor e decepção, Tchádi pensara em descontrair o matrimónio com Cicinha. Não suportava viver debaixo de uma atmosfera de traição.

Entretanto, Tchádi amara demais a esposa que não conseguiu se ver vivendo sem ela. Pelo que, dado que estavam juntos e ele se sentia feliz com ela, sua sugestão foi de se procrastinar a vinda daquele bebé. Cicinha não anuiu àquele desumanismo. Como qualquer mulher sã, aspirante a mãe, Cicinha teve que se recusar. Tchádi não subsistiu. O peso do casamento ainda se lhe fazia sentir às costas. Olvidando intenções alheias, ninguém se casa hoje para se separar amanhã. Após se ter superado a contenda, Cicinha até fizera questão de se contrapor lhe atribuindo a total legitimidade de Roni, mas Tchádi, mesmo a amando, já não fiava tanto nas suas palavras. ‹‹Vou assumi-lo como seu legítimo pai, mas não terá o meu apelido, terá o seu!››



   Assim, o caso da suposta traição, por parte de Tchádi, ficou fora de questão. Quem alegadamente tinha traído era Cicinha. Soubesse esta no que causaria sua pronunciação acerca do bebé, não teria adulterado a verdade.

Entretanto, Cicinha já não aguentava esta situação. Só continuou com Tchádi mais pelo filho. Durante anos era vista como traidora. Um dia, decidida, cogitou em desfazer-se do matrimónio, do marido. Cicinha tirou proveito da ausência de Tchádi e foi-se embora. Levara tudo que era seu e deixara a casa desacompanhada.

Com a palha e caniço bem amarrados e colocados aos ombros, Tchádi e Roni rumam para casa. O Rio Mulauza estava como sempre esteve. Infestado de crocodilos. Tiveram de parar a umas léguas de distância até que estes se afastassem para que eles pudessem atravessar. Até que numa fresta de espaço livre que os crocodilos, por estratégia, deixaram, Tchádi e Roni resolveram atravessar o rio. Primeiro o filho, depois o pai. Mas este último tropeça numa pedra abaixo da superfície da água e cai. O filho apercebeu-se da vinda dos crocodilos e alertara o pai. No entanto, Tchádi, o dono da teimosia, não quisera largar o molde de caniço. Queria levá-lo consigo a todo o custo. Custou-lhe a mão e antebraço esquerdos. Só quando ganhara um coto é que largara o molde e se colocara em debandada. Incompletamente, sem as suas duas mãos. Quando Roni bradou ‹‹socorro›› não conseguiu trazer ninguém senão fazer esvoaçar as aves que estavam nas proximidades.
Tchádi ficou muito dorido. Cheio de sangue. Roni investiu em ocultar o molde por detrás das árvores para acompanhar seu pai ao hospital. Feito isso, foram imediatamente ao hospital.

A caminho de casa, Tchádi e Roni só traziam gesso ao invés de caniço e tindzulu. Os moldes de caniço e tindzulu ficaram lá no rio, um no meio da correnteza e outro à sua beira. Chegados à casa, eles apercebem-se que a casa estava completamente sozinha. A portinhola estava fechada. Acharam estranho. Cicinha não dissera que ia sair naquele dia.
– Cici! – fremiu Tchádi – Cicinha!
Porém, ela não podia mais responder ao chamado do esposo. Encontrava-se longe do lar.

Eles circunvagaram pela casa toda. Até pelo banheiro. Tchádi fora de novo ao seu quarto e, desta vez, avistara algo brilhando sobre sua cama. Era o anel de noivado de Cicinha. O anel estava por cima de um bilhete que, em poucas palavras, dizia que seu filho tinha de ir morar em casa da sua avó do lado materno, e que depois de um tempo a mãe o ia buscar para juntos morarem. Onde, não disse.

Tchádi encarou o bilhete como um absurdo mas, ainda assim, Roni fugiu no dia seguinte, depois de ter lido o mesmo bilhete caído ao lado da cama, no quarto de seus pais.
Tchadi perdera o chão.
Passados uns bons punhados de tempo, a vizinhança desconfiara do silêncio integral que na casa dos Kulangas se verificava. Então, os vizinhos resolveram arrombar a portinhola que dava acesso ao interior da casa, pois para acesso ao quintal não tinha porta. Fácil. A casa era feita de caniço e já estava velha. Um corpo pendia através de uma corda amarrada do pescoço ao barrote do tecto. O vislumbre era asqueroso de maneiras que todos entravam e saiam a cada minuto para buscar ar fresco e límpido. O cadáver estava em fase de decomposição quase que absoluta, dado que a parcial teria começado no rio.
Tchádi saturou-se da vida e vice-versa.




Autor: Rodolf Pondja


Fernando Absalão Chaúque

Professor, escritor, poeta e blogueiro. Licenciado em Ensino da Lingua Inglesa. Autor de ''Âncora no ventre do tempo'' (2019) e co-autor de ''Barca Oblonga'' (2022).

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