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Sentia minhas pernas, mas quase não sentia os degraus. Pareciam ondas num mar cheio de verão – como se fossem peixes –, águas cristalinas roçando a planta do pé. Vinham de longe, como um som no fundo de um vácuo, mas ali estavam, uma a uma.
Ele fotografou meu olhar hesitante, mas logo confirmou:
- Não te preocupes…
Não tive consolo, mas voltei a seguir a marcha. Desobedecendo os meus instintos. Os músculos até resistiram, mas a sua mão no meu ombro obrigava a carregar os joelhos.
- Não tem luz?
- O escuro não é romântico?
Tranquei-me a movimentos, proibi que a minha boca se atrevesse a mais… Ia batendo-me com os degraus enquanto meu corpo seguia. Só o corpo. O coração estava na estrada, a caminho do meu Hulene. A cada passo que dava passava uma paragem a caminho de casa.
Intorrompeu-me os movimentos. Empurrou-me à parede e, selvagem, sentia mais perto o hálito a cerveja. Quando seus lábios prenderam-se aos meus, tive certeza que a noite não seria nada abonotória, embora ninguém me obrigasse a deixar para trás a chamada que Marito, meu namorado, multiplicava a mil desde às 18h00, quando saí do trabalho.
Sua língua penetrou-me na boca e logo deixei cair os pensamentos, a bolsa também. Não se deu por rogado, continuou a desembrulhar os meus lábios. Eu só sentia dor no coração. Bateu mais forte quando a mão rugosa atreveu-se nos seios. Minha blusa não cedia. De tão apertada, alguns fios fugiram do tecido. Não vi na hora, só quando me levou ao segundo andar, já iluminado.
- Rasgaste-me a blusa.
- Sério?!
Nem sequer olhou para mim. Preferiu encontrar os segredos da fechadura do que atender as minhas lágrimas. Já uma caía, de facto. E a vontade inexistente de continuar ali se esfumava a cada segundo. É que aquela não era uma simples blusa, mas um presente do dia anterior, dia do meu aniversário. Marito trouxe-o com um buquê de flores. Mais do que isso, com um arco-íris em forma de palavras.
- Até que fim. Vamos.
Continuei ali. Resisti aos seus movimentos selvagens. Não sei porquê, mas acabei entrando.
- Olá, bem-vinda.
Cumprimentaram-me com um tom despido de decência os outros dois jovens que derrubavam garrafas pelo chão.
O apartamento era apertado, mas cabia tudo. Sofás, televisor, geleira e aparelhagem de som que, na altura, estava desligado. Mas logo que me sentei, como se tivesse um contacto, o volume saltou e não ouvi voz de mais ninguém senão música.
Ele chegou-me perto e sentou-se nas minhas pernas. Os outros, ainda que distraidos, assistiam as suas mãos safadas em meu corpo. Ofereceu-me uma bebida, mas não para tomar. Entornou o líquido no meu peito e sorveu com uma sonoridade irritante. Vontade já não era de chorar, queria, mais é, abrir uma cova e cair pelo rés-do-chão.
- César.
Ouvi o seu nome pela primeira vez. Virou-se, mas não largou as minhas coxas.
- Diz a ela assar aquele frango.
Olhou-me cheio de fome:
- Deixa assar-lhe a ela primeiro
Riram-se. Eu esbocei um sorriso para abafar a minha resposta:
- Eu não sou carne.
- Tu és minha carne.
Antes de eu retorquir, adiantou-se.
- És minha carne, ora essa.
- Nossa. – Insistiram.
Gelei.
Não combinamos isso.
- Aumento 500.
- Não quero.
- Achas pouco, 2500?
Respondi com profundos soluços, enquanto ajeitava a blusa que já me tinha fugido do corpo.
- Os três, não. Nem pensar. - Dizia aos choros.
- Relaxa. Aumento mais 500 e não se fala mais nisso.
Olhei-os com vista de máquina calculadora. Minhas contas não deram um número positivo, ainda que quisesse o dinheiro. Aliás, só foi por isso que esta sexta-feira ignorei a boleia do meu colega que sempre me deixa na porta de casa para estar com um desconhecido do facebook.
Os outros, com os músculos erectos, resmungaram:
- Como nos trazes uma mimada, dessas?! Se não quer lhe ponha para fora que lá em baixo não faltam famintas.
César ainda insistiu... E eu, mesmo em prantos, deixei a aceleração da mão do rapaz desabotoar a minha blusa já em fios. Foi num toque que a saia pulou para o escuro da sala e entre choros e gemidos César mostrava seu machismo por cima de mim.
Desfalecida, fui obrigada a levantar a cabeça e sentir a vara pela boca enquanto o outro virava meu corpo vezes sem conta. Trocaram-se os moços umas três vezes, até que todos caíram sentados deslumbrando-me caída no meio da sala, sem força nem mesmo para respirar.
- Vai até ali que é casa de banho.
- Depressa, antes que a minha mulher chegue.
Fitei-o espumando de raiva, enquanto me levantava. Deficiente, segui cambaleando até ao banho. Ao voltar, encontro três notas no ar, como se presas num caniço, mas César é quem as tinha segurado.
Não me faltou vontade de ignorar o valor, mas o compromisso era mais importante que o ego. Desci sem lhes olhar novamente e sem lhes dirigir a palavra. O outro, quem não falara em toda a festa, despediu-se.
- És muito boa, para semana César tem que te chamar de volta.
Enquanto tentava decifrar o tecto das escadas com os pés, recebi uma mensagem do Marito. Atônita, entre decidir se ignoro ou não, meus dedos trêmulos decifraram o texto.
Li sem voz, mas no cérebro fez um eco ensurdecedor:
- Amor, finalmente consegui os três mil para pagar a cirurgia da tua irmã.
Por Elcídio Bila
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