A volta do Nyamadjedo
Numa
noite, um homem vinha de uma viagem, trazia consigo uma mala de mão, vestido de
um fato castanho, e sapatos pretos. Pisava o caminho calmamente, como quem está
a mandar fazer hohooó à terra.
Vislumbrava de longe uma palhota, a casa onde nascera. Não imaginava o que lhe
esperava. Quando chegou espancou a porta feita de caniço, como não era de
costume receber visitas ao pico da madrugada, os proprietários da casa
hesitaram em abrir a porta. Quem será a
esta hora? Perguntaram-se todos, a partir dos mais velhos até ao bebé que
pôs-se a chorar de tanta curiosidade.
- Quem é? Inqueriu o mais velho da
família, por sinal o pai.
- Sou eu…! Respondeu.
– Eu também sou sou eu, agora você é sou eu quem?
O bebé peidou e ninguém sentiu o cheiro. Com muita razão, mesmo o bagre
à mesa foi esquecido pelos homens de casa, e nem as manas queriam saber da
esteira. Todos estavam atentos a voz doutro lado da porta.
- Quando chegar em casa de pessoas tem que
falar que sou eu tal fulano. Disse o velho, com os cabelos que o faziam
acreditar ser o dono da razão e da certeza, por mais que estivesse no meio,
aliás, na ponta da incerteza.
- Sim. Respondeu o vindouro.
- Agora fala então, é quem você? Já
ninguém se aguentava e a tensão subia. Mais outra vez o bebé peidou.
Quando o homem estava prestes a revelar a sua
identidade, ouviu um barrulho que vinha da parte lateral da casa. Espreitou,
viu uma capoeira cheia de patos, era na verdade a que tivera construído há anos
atrás, isso lhe fez voltar ao passado da sua identidade, recriando fragmentos
da sua pessoa. A primeira coisa que lhe veio à cabeça foi a ideia da criação
dos patos. Tudo começou quando o seu tio lhe ofereceu um pato por ter acertado
todas contas aritméticas das quais ele se gabava porque eram coisas do tempo
colonial e os mais novos não tinham noção. Nota-se que pato não se come em
qualquer dia, devia esperar uma festa, o que não se sabia é que a ave era fêmea
e com ovos germinando dentro dela. Semanas depois começou a dar ovos, daí que
surgiu a ideia de construir capoeira.
No dia da construção acordou cedo, antes dos
galos do vizinho cantarem, trabalhou a manhã inteira, o que lhe levou a faltar
às aulas. Os colegas não tinham a quem gozar os dentes, as charruas sempre fora
da boca, na verdade tinha mais dentes que a boca. O professor veio à casa do
rapaz saber o motivo da falta, empunhando uma varra na mão, a educação manual
dos velhos tempos. O professor ficou fraco quando soube que o seu aluno
favorito não veio às aulas porque ganhou uma aposta que ele perdera.
No dia seguinte, na escola apareceu um
comunicado urgentíssimo, vindo do gabinete central do presidente da república,
que os alunos inteligentes deviam ir a Cuba estudar, a viagem estava marcada
para o dia seguinte.
O
representante do gabinete central fez a questão de ir a casa de cada membro
selecionado.
- Mamã teu filho deve ir a Cuba estudar… disse
com voz de imperador .
- Meu filho estudar cubha? Não, não vai…! É,
que Cuba soa parece Kubha,que significa roubar, a senhora entendeu que o filho
iria estudar roubar.
- Você não sabe mesmo, ele vai estudar na
escola de muito longe… disse o pai muito feliz.
- Muito longe dele é roubar? Não quero essas
coisas para meu menino. Só porque ele tem dentes fora da boca, estão a lhe
mandar roubar? Mas você, meu marido é assim mesmo? Sabia que não gosta muito do
meu filho, mas não lhe pode vender para esse senhor, é teu filho também aquele.
Falou a senhora como fera, como leoa, como grades duma casa prontas para
defender tudo que vier. Os punhos já estavam fechados, as rugas já estavam
trancadas e a maternal dor ressurgiu misturado com a indignação.
- Cala boca, você está a me envergonhar afrente
do ilustre aqui.
- Isso de ilustre, ilustre não é na minha casa.
- É você que construiu?
- Assim você come cocô de pato? A
discussão já passava dos limites, que o visitante se sentia constrangido.
- Desculpa senhores…!
- Não tenho dez makupa.
Respondeu com voz de felina.
- Calaboca…! Você não está a ver que é feio?
Continua, faz favor senhor.
- Sim, trago-lhes este documento vindo do gabinete central
do presidente da república que diz que o vosso filho vai estudar fora do país…
- É pra ele ser doutor nem?
- Sim!A resposta agradou tanto que a
senhora acabou sozinha por entender o real motivo da visita e encheu-se de
orgulho até trasbordar nos olhos os sentimentos maternos, mas a vergonha
prevaleceu.
- Leva ilustre, é todo teu. Respondeu
o pai alegre.
- Amanhã o autocarro passará daqui às oito para lhe levar.
- Está bem, não quer também batata-doce? Perguntou
a senhora envergonhada pelo vexame, com alegria, meio sem jeito, com um sorrisoà
meia-lua.
- Fica para outro dia!!! Na verdade queria
as batatas, só o desejo de manter a pose de muito importante prevaleceu.
Enquanto
isso um silêncio absoluto reinava dentro da palhota, até o cheiro do peido era
silencioso, o sabor do bagre também estava questionando a identidade do homem
atrás da porta. O mais velho tossiu para chamar atenção de que ainda esperava
pela resposta. A resposta tardava em chegar porque a cada pedaço do quintal
fazia retornar ao passado do homem. Ao lado da capoeira está um laço, antes era
de cor vermelha, agora já é rosado. Este mesmo laço lhe fez chamar o dia de
despedidas.
Logo que o oficial do gabinete central se
retirou da sua residência começaram os arrumos das malas, uma pertencia ao avó,
passou a pertencer ao pai e por necessidades internacionais passou a ser do
rapaz, dentro tinha roupas e fotografias e um pouco de dinheiro que era para
comprar outras coisas na cidade, a outra era um chikonyito de capulana amarrado
aos quatro cantos cardeais, nesta tinha massaroca, batata-doce, e mandioca,
estava muito pesada. Na noite daquele dia não se dormiu, toda família estava
ansiosa como agora. Há quem preferiu tentar dormir cedo para a noite passar
rápido, mas não foi possível.
Quando os galos do vizinho anunciavam o novo
dia, toda a família já sabia, não era novidade, apenas esperavam pelas oito
horas. Tudo corria, excepto o relógio. Quando chegou o carro, hora de partida,
um abraço uniu sentimentos, lágrimas de um adeus, um não sei até quando,
reinava. Era o momento mais cru, de expectativas, de medos, alegria e tristeza.
Tudo se misturou num instante só. Nessa altura o pai lhe deu um amuleto dos antepassados
para trazer mais sorte, a mãe deu um terso com imagem da virgem Maria, os irmãos
apenas ranhos nos abraços. Foi quando o rapaz rasgou da manga da sua camisa
vermelha um pedaço de tecido e amarrou num dos pilares ao lado da capoeira, um
juramentos de que regressaria para a família, para os patos e para Moçambique,
e partiu.
- Desculpa,
o senhor sou eu vai falar o nome? A dúvida piorava, ocupava todo o espaço
na casa, apenas sobrava uns centímetros para mais um peido.
- Sou eu vosso filho…!
- Que filho?Com voz grossa, de arrastar todo o
peito para fora.
- Aquele que viajou para Cuba, estudar. Antes que terminasse a porta
lhe empurrava para dentro, com alegria de festa, de sepultar as saudades. Todos
lhe receberam de pulmões a mostra e publicando océu-da-boca de tanta felicidade,
menos a mãe que estava indignada e entristecida.
- Senhor porque você quer brincar com as
gentes daqui em casa? Você não é meu filho. Afinal é assim, levam filho de
outro, matam e depois trazem outro para substituir? Meu filho não é você… na
verdade ela não via a marca que o filho carregava, os dentes fora da boca.
- Mamã, sou eu teu filho. Falou
implorando "acreditação".
- Meu filho não é você, meu filho é “nyamadjedo”
tem dentes fora.
- Sim, eu mesmo, apenas fiz uma operação nos dentes...!Já
que estava difícil convencer de que era mesmo ele, o homem decidiu abrir a mala
e tirou as fotografias antigas, que ilustram os dentes que lutavam por um lugar
na boca, e a camisa vermelha sem uma manga. Esta foi a prova, o exame de
maternidade
- Évocêedhi mesmo meu filho!!! Falou
acariciando o rosto do filho, afinando os olhos como quem embeleza uma escultura, como olhar de uma criança depois
de uma descoberta fascinante.
- Pensei que te fosse perder, meu filho, você
veio.
- Olha nosso filho, está bem grande, homem de
verdade…! Muitos comentários desses surgiram, os peidos se extinguiram junto com a curiosidade.
No dia
seguinte, homens e mulheres foram ao cais carregar sacos e malas do vindouro. Fez-se
uma grande festa, até hoje se lembra do banquete e principalmente o episódio
dos dentes fora da boca.
Glossário
Nyamadjedo – indivíduo com dentes incisivos e caninos e projectados
para fora da boca.
Peido – flatulência
Kubha – Em língua Ndau Significa roubar
Makupa – em Ndau significa pulga
Chikonyito – amontoado de alguma coisa
Que história maneiro!
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