A dama dos sonhos


 
A dama dos sonhos
Créditos da foto AQUI
Não me importava com as curvas e nem seios alheios. A mulher que encantava os meus dias chamava-se Matilde. Por um tempo vivi engaiolado na solidão e, sem consciência da minha condição, gritava felicidade defronte de um computador. A minha obsessão pela escrita me fez dominar o som emitido pelo teclado quando os dedos pressionam. Uma parte dos amigos abandonou-me, prefere ler os meus textos a ficar comigo. Os mais corajosos diziam que sou real e mais divertido em crónicas e em outros tipos de texto. Fiquei abraçado ao silêncio para entender o verdadeiro sentido de se sentir acompanhado. O coração palpitava por não ter alguém para amar. Gradualmente, a mente foi sendo usurpada por intuições que até ali, não considerava urgente. Imaginava como seria a minha cerimónia fúnebre, caso morresse de alguma doença desconhecida, mas estreitamente relacionada a falta de uma companheira. Supôs que, os que viriam à cerimónia, apenas estariam para confirmar a minha morte. Seriam um número ínfimo de pessoas que choraria por mim. Os meus (ex) amigos sentiriam falta dos meus textos e, talvez, só depois é que se dariam conta da minha morte.  

Passei a frequentar jardins da cidade para espairecer. À noite, esses lugares abarrotam de casais com vontade de beijos infindáveis. Eu queria estar num lugar que não fosse defronte do computador. Os casais iam se beijando com fervor. Outros acariciavam-se as faces com um olhar de “Até que a morte nos separe”. Eu precisava de presenciar aquele cenário para que pudesse mudar a minha condição. Os casais beijavam-se como se o beijo fosse uma lei estabelecida pelo Estado. Chegado à casa não me era possível imaginar um texto que debruçasse sobre a solidão ou fogo de amor. Desta vez, não queria imaginar o amor. Queria viver dos sabores que influenciam para um sorriso sincero. Mais do que nunca já me sentia completamente sozinho.
A ida aos jardins foi-me transformando num romântico com desejos dignos de serem experimentados. Abandonei o computador, e nem voltei a conversar com os (ex) amigos porque já me consideravam um indivíduo chato ou quase louco. Eu gritava todos nomes e nenhuma mulher respondia aos meus gritos. Faltava-me sorte ou as mulheres não gostam de homens muito chatos? Fui reflectindo à volta da questão e, finalmente mudei de estratégia. Deixei de procurar pelo amor e tornei-me num homem menos angustiado.

Num fim-de-semana fui tomar duas cervejas para esquecer de que ainda sou homem engaiolado na solidão. Mas quando voltava da cervejaria, encontrei uma jovem aparentemente mais nova que eu. Supôs que ela não estava na rua pelo amor ao passeio. Fugia de alguma coisa que a tinha deixado frustrada. Ela acompanhou-me sem questionar os motivos da embriaguez. Mas eu perguntei o que uma jovem fazia àquela hora, “ Estou fugindo de mim mesma. Tudo está dando errado na minha vida. As minhas notas são péssimas na escola”. Não é a resposta que eu esperava, mas no mínimo disse alguma coisa.

Ao acordar senti uma dor estranha tomando conta dos meus sentidos. Era a minha primeira vez na cervejaria. Lembrei-me de que tinha conhecido uma jovem cujo nome não me aparecia. O semblante dela ia partilhando espaço com a ressaca que me estava atormentar. Era uma rapariga invejavelmente linda. Resolvi voltar ao computador para registar o breve momento visto que tinha-me libertado da ideia de que não é possível encontrar um amor no acaso. Escrevi um texto repleto de metáforas de difícil interpretação e, no dia seguinte reeditei-o. Quanto mais relia o texto, a breve conversa com a jovem desconhecida fazia-me pensar que estava apaixonado. Sorri porque finalmente o coração dava sinais de existência.

Crescia a vontade de estar acompanhado. Mas nunca mais vi a jovem da noite da cervejaria. Se antes fazia rabiscos, agora não conseguia fazer quase nada. Vivia em jardins e praças públicas apreciando casais que aproveitavam cada segundo das suas vidas.

 Num dia de intenso calor, conheci a Matilde. Uma mulher cheia de atitude. Ambos estávamos numa fila do hospital. Vendo o sofrimento da jovem, ainda que cansado pela actuação da malária, sugeri que entrasse. “ Primeiro as damas”, ela exprimiu um sorriso típico de um doente. Imitei-a. Por um momento, esquecemo-nos de que estávamos no hospital e contemplamo-nos. A Matilde não era linda, mas a simplicidade dela tinha abatido os meus preconceitos seculares. Vi-me cercado de uma paixão que não sabia medir. Quando ela saiu, pedi que esperasse para caminharmos juntos.
Renasci ali. Descobri que eu não era tão chato, talvez precisava de alguém para tocar na minha face uma vez ao dia. Desvendamos mistérios que não deviam ter sido desvendados naquele dia. Marcámos um encontro promissor. Eu não soube definir se a Matilde já era minha namorada. A sua viveza engasgava-me. Estava alegre, mas ao mesmo tempo questionava a temporalidade daquela amizade. Falávamos mais de quatros vezes ao dia. Tive de procurar um (ex) amigo para me ajudar a interpretar o que houvera. “ É só uma questão de tempo, amigo. Vai com calma”. Tudo o que não queria era ir com calma, contudo, respeitei a sugestão.

O aparecimento da Matilde extinguiu a melancolia para abrigar uma vivacidade cuja explicação adulteraria o sentido do que vivemos. Apenas sei dizer que foi maravilhoso. Agora me dei conta de quão era chato antes de ela aparecer. Sonhava com o mundo, mas nunca saia para contempla-lo. A Matilde afastou-me dos livros proibidos para que pudéssemos viver sem teorias radicais. Deliberei. Não é apenas do oxigénio que os homens respiram”, dizia ela com uma certeza incontestável, “Devemos escolher alguém que nos faça respirar de facto”.

 Para além da Bíblia Sagrada que ela lia sem propósito, o seu manual de aprendizagem era a vida. Aquele momento foi um marco na história de amor. A humanidade devia conhecer as cores que fazia fluir os nossos semblantes. Viajávamos pelo nosso corpo porque nada nos importava se não a exaltação do amor através do contacto espiritual e físico. Importávamos novas técnicas que pudessem nos prender à cumplicidade. Os gritos do mundo exterior afectavam-nos quando distraídos. Sabíamos de antemão que éramos diferentes, mas foi esse o motivo que nos uniu.

 Eu sempre amei caminhar num mundo que maioria considera diminuto. Não foi Friedrich Nietzsche que me corrompeu com as suas ideias. Talvez aprecie os seus escritos porque concordamos em alguma coisa. A Matilde tornou-se numa cristã incorrigível e eu cansei de dizer ao único amigo que me restou de que prefiro que a minha mente me molde. Ela foi rasgando as páginas mais significantes dos livros que (às vezes) lia. O amor ao orgasmo fazia-me confundir o amor de facto. Pedíamo-nos desculpas na cama, de pés entrecruzados e com a face tremendamente suada. Eu pensei que ambos amávamos a nossa diferença. Por longos anos passeámos de braços dados sem questionar se um amava a vida e, o outro amava Cristo. Nunca ocultámos as nossas crenças porque havia um sentido de vida por partilhar. Isolámos as opiniões alheias e traçamos uns planos que seriam determinantes para um futuro sem sorrisos tristes.
A Matilde foi amando o abstracto. Tudo que é tocável não era digno a um homem que vive de princípios. Paciente, eu pedia para que ela voltasse a ser aquela Matilde destemida e sem discursos de pendor doutrinário. Os dias foram transformando as vivências num tumulto incontrolável. Escondíamo-nos no orgasmo. Pintávamos a realidade cuja origem desconhecíamos. Fingíamos não ouvir o alarme que há muito tempo alertava para um conserto comportamental. A contradição moral foi injectando gotas de amargura e frustração. Já não conseguíamos definir o conceito amor. Matilde dizia que Deus me ama. Como sinal de tolerância, eu agradecia com uma voz trémula, ainda assim, viva.
O “amo-te” foi radicalmente substituído por “Deus te ama”. Procurei as páginas rasgadas de Friedrich Nietzsche. Não encontrei. Pelo amor à Matilde aprendi a ler bíblia. Foi-me dito que a salvação da nossa relação dependia dos trechos bíblicos. Fui percorrendo versículos e versículos. Foi interessante porque nunca tinha lido a bíblia com tanta maturidade. A Matilde renascia com uma aparência menos benigna. Apesar de estarmos abraçados, ambos não conseguíamos encontrar o sentido do abraço. Apesar da diferença moral que nos separava, as vezes éramos sinceros e, por isso, renunciámos os beijos e passámos a nos despir sem carícias. A falta de cumplicidade solicitou suspeitas e, se não trocámos os telefones foi por respeitar a agenda de cada um. Eu não conseguia mais captar o oxigénio normal que a Matilde referiu no momento estreante da relação. As mensagens que li reflectiam uma Matilde diferente da que conhecia. Tentei lembrar o motivo que a tornou numa mulher amargurada e bastante cristã. Foi uma mensagem telefónica que mudou o curso da nossa vida.

As conversas que tinha com Jamal forçaram-me a ler novamente a bíblia. Fui folheando nos provérbios “ (…) Os lábios da mulher estranha destilam favos de mel, e o seu paladar é mais macio do que o azeite. Mas o seu fim é amarguroso como o absinto, agudo como a espada de dois fios. Os seus pés descem à morte: os seus passos firmam-se no inferno”. Quando terminei, fui encontrar-me com Jamal. Falámos sobre a recomendação que me havia dado, “ I told you nigga. Ye.”. Gesticulava com a mão direita como se quisesse arranhar a minha vista. Depois do “I told you nigga”, espalhou fumo de cigarro pelo ar e disse, “ a bíblia tem as melhores barras da life”.

Eu tinha vivido um amor luzente, não queria voltar ao computador. Enquanto a Matilde orava por mim, eu escrevia mensagens de insistência dizendo que, apenas nós poderíamos mudar o curso da vida. Fui dispensado pelo silêncio. Sofri como todo solteiro desesperado. Pedi conselhos, mas as pessoas encontram o sentido de vida no perdão celestial. Liguei o computador e logo no Desktop esbarrei-me com o texto que dediquei à jovem da noite de cervejaria. Fiz os meus cálculos. Ela não morava longe porque quando nos encontrámos trazia umas roupas típicas de quem não mora longe. Foram semanas de vigília sem êxito. Não perdia a esperança porque a jovem me havia demonstrado o seu lado humano. Tinha de encontra-la para dizer que já era tempo de visitarmos outro planeta onde seria impossível viver das amargas do passado. Pelo contrário, vingaríamos a amargura.

 Numa tarde fria, vi uma jovem uniformizada que se aproximava de mim. Fiquei feliz porque pensei que ela estivesse a glorificar um dos meus slogans, “ Atitude não tem género”. A sua simpatia facial sujeitava-me a uma dor interna e inexplicável. Mas gostava daquela dor e, por isso, procurei por ela. Quando chegou a mim com um jeito delicado, “ Desculpa, incómodo”. Ela esperou pela minha reacção com olhar tentador. Eu não estava em condições de proferir sequer uma palavra. Passei semanas à procura daquela jovem e, agora que estava diante de mim, não conseguia corresponder a um simples pedido. O meu silêncio deu indicações de aprovação. Ela, fisicamente definida e com bónus de uma voz viciante, disse, “ mandaram-me para te dizer alguma coisa”. Ouvia tudo que ela dizia, mas enquanto isso imaginava a paisagem que a camisa de uniforme ocultava. Eu tenho a certeza absoluta, não era a influência do soutien que tornava os seios dela num paraíso habitável. Talvez fique mais linda quando nua. A jovem terminou com uma palavra que deteriorou as pequenas lembranças, “ Deus te chama”. Agradeci a boa nova e, tudo que eu queria naquele instante era tomar umas cervejas em esquinas longínquas. Estou naufragando o sonho de ser um homem normal. Eu não nunca ambicionei compreender todos fenómenos, pois sei que morreria grudado a um papiro cujos homens desprezam porque odeiam conhecer a sua origem.



ABMAZ MANZINE
Fernando Absalão Chaúque

Professor, escritor, poeta e blogueiro. Licenciado em Ensino da Lingua Inglesa. Autor de ''Âncora no ventre do tempo'' (2019) e co-autor de ''Barca Oblonga'' (2022).

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