A MORTE DAS ILUSÕES* Por: Lino A. Guirrungo


“Querido amigo,
Há dois meses que venho pensando em te escrever. Sei que deves pensar que dois meses é demasiado tempo para uma carta como esta, mas deves entender que nunca escrevi uma carta antes. Escolhi escrever especialmente para ti porque acho que és, entre os meus amigos, o que mais é capaz de me entender, embora, em abono da verdade, quisesse gritar para todo mundo me ouvir.
Se tivesse que escolher o dia em que indubitavelmente fui feliz na vida, escolheria o dia em que tomei conhecimento da minha admissão na universidade. Sempre considerei a universidade o lugar em que se conquistam sonhos e se consagram os académicos e os indivíduos. Não acreditava que todos os estudantes universitários fossem (ou viessem a se tornar) verdadeiros cientistas mas, pelo menos, sempre os considerei pessoas bastante distintas.
Com o tempo, a universidade mostrou-se um espaço amalgamado de muitas contradições. Esquecendo os conhecidos males estruturais do país e das instituições universitárias, fiquei verdadeiramente surpreendido pela apatia colectiva que afecta não só aos estudantes mas também aos professores.
Conheci muitos estudantes completamente indiferentes aos seus cursos. No meu curso, por exemplo, num universo de quase cinquenta, apenas cinco estudantes queriam fazer a formação como sua primeira opção.
Muitos dos meus colegas queriam fazer os famosos cursos de Direito e/ou Administração Pública, mesmo sem saberem ao certo a razão da ambição desses cursos tão badalados. Era simplesmente indisfarçável o rosto triste dos meus colegas. No entanto, parece que isso é um mal colectivo da universidade.
Um dia encontrava-me na biblioteca da universidade e vi uma bela estudante segurando “Os Maias”, de Eça de Queirós. Tendo eu já lido o livro, aproximei-me para dizer que era uma boa escolha. Ela olhou-me inicialmente com espanto e depois com muita pena respondeu-me: «Moço, eu sou estudante de Literatura mas não gosto de ler. Na verdade, estou a fazer um trabalho de uma disciplina e faço este curso porque não quero ficar em casa sem fazer nada». Embaraçado, afastei-me sem dizer uma palavra.
Ignorando o absurdo de ela ter mencionado “não gostar de ler” mesmo cursando Literatura, confesso que me encantei com a franqueza daquela estudante. Naquele dia, percebi a hipocrisia da instituição universitária, da minha e dos outros estudantes universitários. Como somos capazes de exigir excelência académica quando as pessoas não estudam o que desejam cursar? Como esperar que alguém crie sonhos futuros em torno de um curso que no presente representa a morte das suas ambições, esperanças e ilusões?
A universidade apresentou-me um outro fenómeno ainda mais grave que a apatia dos estudantes. Excepções sejam feitas, mas aqueles que têm dinheiro e não estudam “compram” o conhecimento e os que não têm dinheiro e estudam “vendem” o conhecimento. A sofisticação do mercado de venda de trabalhos académicos é tal que chego a sentir vergonha pela minha ingenuidade de nunca ter desconfiado que tal prática era comum nas nossas instituições superiores de ensino.
Os professores não estão interessados em combater a prática (talvez porque provavelmente não lêem a maioria dos trabalhos) ou simplesmente, tal como os estudantes, estão apáticos e conformados com a situação. Sinceramente, esta prática faz-me pensar que o ensino no pós-laboral devia ser abolido porque a maioria dos “compradores” estudam nesse período. No entanto, estou consciente que tal acção seria inconveniente e arbitrária.
Falando em professores, tenho de te dizer que a minha maior desilusão com eles não é académica mas pessoal. Acho aceitável que um professor não seja o protótipo de intelectual de primeira (até porque acredito que seria pedir demais dos nossos professores!), mas não acho admissível que eles não inspirem os estudantes como um modelo de cidadão a ser seguido. Eu encontrei professores completamente conformados com a sociedade e a vida, não lidos e arrogantemente alheios a essa imagem que transmitiam aos estudantes. Não obstante, neste jogo de “esconde-esconde” e “joga a culpa ao outro”, ninguém ousa falar do comportamento nada inspirador dos professores.
Quatro anos foram-se e do jovem enérgico que fui restam cinzas. Sinceramente, hoje eu não queria ir a esta graduação. A graduação representa, além de muito, o fim de um ciclo preparatório. A universidade de quase nada me preparou para esta minha nova fase da vida. A coisa que a universidade fez certamente foi destruir a maioria das minhas fantasias.
Actualmente as exigências são enormes. O desemprego é uma prova viva desta miséria preparatória. A minha mãe é muito compreensiva, tu bem conheces a dona Lurdes, mas até quando ela continuará a ser? Os meus irmãos e a minha namorada aguardam pelo tal futuro, que eu próprio acreditei nele, há quatro anos, mas não sei se conseguirei atingi-lo.
Estou preocupado.
Carinhosamente,
Teu amigo.”

*Originalmente publicado no fórumÍmpar.blogspot.com

A MORTE DAS ILUSÕES* Por: Lino A. Guirrungo
Lino A. Guirrungo

Lino A. Guirrungo, nascido em Maputo, capital de Moçambique, é escritor e activista social. Iniciou-se na escrita escrevendo poemas, tendo publicado seus poemas inicialmente em duas antologias - Entre Nós e Palavras, vol. I (2010) & vol. II (2011) - pela editora Kutsemba Cartão. Seus últimos poemas encontram-se na antologia independente Alta Temperatura de 2015, altura em que passou a se dedicar a crónicas e artigos de opinião publicados com regularidade no Fórum Ímpar Blogspot. Igualmente dedicado a causas sociais e ao associativismo juvenil, foi membro e coordenador do movimento literário Aldeia Literária, bem como activista pelo movimento Activista Moçambique da Actionaid Moçambique.
Fernando Absalão Chaúque

Professor, escritor, poeta e blogueiro. Licenciado em Ensino da Lingua Inglesa. Autor de ''Âncora no ventre do tempo'' (2019) e co-autor de ''Barca Oblonga'' (2022).

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