O lado bom da ''escravatura'' – Gerson A. S. Pagarache

 

Eram cinco horas da manhã, quando Aristóteles despertou. O filósofo foi abruptamente acordado por uma ideia genuína, uma fórmula incontestável de erradicar a corrupção e instalar o governo perfeito para o seu país, Moçambique. Fazia semanas, meses e anos que Aristóteles investigava, dia e noite, a melhor forma de acabar com um governo corrompido, até que, naquela manhã católica, a inspiração divina o visitou.

O sábio nem remexeu os olhos para retirar a carranha. Coçou a floresta da sua barba velha, de onde saiu uma barata gigante e cinzenta, que desapareceu por entre os lençóis. O filósofo nem se preocupou em sacudi-la. Devia ser o seu animal de estimação.

Ergueu o tronco. A espinha dorsal rangeu. Fixou os pés, preparou o impulso, saltou da cama e só foi aterrar na cadeira de sua secretaria, que ficava a uns escassos metros de onde deitava o cansaço. A solução dos problemas daquele país estavam ainda frescas naquele cérebro de geografia saliente. E precisavam ser rapidamente registadas, estruturadas e desenvolvidas.

O quarto era um alvoroço. Uma turba de papéis e farrapos. O jovem pensador clicou no teclado power do computer. Este não reagiu. Aristóteles voltou a insistir. A máquina continuou alheia. Fúria iminente na cabeça do sábio. Mas não era a primeira vez, por isso teve um palpite. Dirigiu-se à sua sala vazia de humanos e lotada de imundície e objectos dispersos. Pensar era a única coisa que fazia com organização e higiene. Vivia do que os livros vendiam e do que as revistas pagavam por cada artigo seu.

Olhou para o regulador de saldo de energia eléctrica: 00.00. Um dos maiores pensadores do país estava com o saldo de corrente esgotado. Era comum. Naquele país, quem era grande em filosofia, era pequeno em economia. Quem mais produzisse papéis de conhecimento, mais perdia papéis de dinheiro. Aristóteles mergulhava tanto nas reflexões que se esquecia de controlar as despesas rotineiras.

Saiu de casa a procura de um agente M-pesa. Optou pela barraca do tio Magaia, que ficava ali próximo. Quero depositar, disse. Não tenho saldo, respondeu o outro. Aristóteles tinha de continuar viagem. Continuou. Ao segundo agente encontrado, desta vez, o velho Madeira: Quero depositar. Quanto? Cinquenta meticais. Não tenho saldo. Aristóteles teve que seguir viagem. O velho Madeira não movimentava migalhas. Se o valor não tivesse, no mínimo, 3 dígitos, o velho mandava-te passear.

Aristóteles continuou. Continuou mais um bocado. Já estava no mercado central, distante de casa. Ao primeiro agente que questionou, conseguiu o intento. Depositou e já comprou a recarga. O filósofo regressou para casa a galope.

Recarregou. Lustrou, mutolamente, a sala e o quarto. Puxou a cadeira da sua secretaria. Ligou o computador. Lá estava a luz magistral do ecrã, pronto para servir ao seu senhor. Aristóteles abriu o Microsoft Word. Lançou dedo aos teclados e, num repente, parou. Estancou. Pensou. Fazia pouca ideia do que deveria escrever. O brilhante pensamento matinal sumira. Dispersara. Ele esqueceu-se. Culpou as viagens para o Magaia, para o Madeira e para o mercado central. Culpou os deveres domésticos. No mesmo instante, Aristóteles teve uma nova e radiante ideia: preciso de um escravo!

Autor: Gerson A. S. Pagarache (2022)



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