Entrevista a Herberto Helder - Conversas d'além mundo

Entrevista a Herberto Helder -  Conversas d'além mundo
Herberto Helder


“Li algures que os gregos antigos 

Não escreviam necrológios,

Quando alguém morria perguntavam 

Apenas: tinha paixão?

Quando alguém morre também eu quero

 Saber da qualidade da sua paixão:

Se tinha paixão pelas coisas gerais,

Água, música, pelo talento de algumas

 Palavras para se moverem no caos,

Pelo corpo salvo dos seus precipícios

 Com destino à glória, paixão pela paixão,

Tinha?

E então indago de mim se eu próprio tenho

 Paixão, se posso morrer gregamente,

Que paixão?”


A paixão é o sentimento que move os passos do coração; move-os a correrem mais e mais em busca da fantasia que se faz presente no nosso íntimo. “A PAIXÃO GREGA” é o título que dá vida aos versos acima expostos, pertencentes ao poeta e escritor das terras do Camões, Herberto Helder, considerado por alguns “o maior poeta português da segunda metade do século XX e um dos mentores da Poesia Experimental Portuguesa”. Herberto notabiliza-se na Literatura Portuguesa através da sua peculiar personalidade e do seu traço artístico; “era uma figura misantropa e em torno de si pairava uma atmosfera algo misteriosa uma vez que recusava homenagens, prémios ou condecorações e se negava a dar entrevistas ou a ser fotografado”. Sorte nossa, porque ele nos concedeu essa entrevista, (risos). Herberto carrega na sua jornada literária um arsenal fascinante capaz de fazer os olhos de qualquer leitor compulsivo, embriagarem-se de tanto encanto. No seu arcabouço podemos encontrar material poético e narrativo, dos quais destacarmos os seguntes: O Amor em Visita (1958), A máquina de emaranhar paisagens (1963), Os Passos em Volta (1963), Apresentação do Rosto (1968) e Poemas Canhotos (2015) [livro póstumo].


“A Paixão grega”, pode ser considerada um elogio fúnebre composto para si mesmo?

HH: Não sei dizer… as folhas da melancolia arrefecem com astros ao lado do espaço… então não sei o que dizer, mas quando a sombra cai da curva sôfrega dos meus lábios, sinto que me faltam um girassol, uma pedra, uma ave — qualquer coisa extraordinária, palavras!


Será a ausência das “palavras” o que o motiva a desdenhar entrevistas e fotografias?

HH: É possível... mas minha cabeça estremece ao esquecimento quando procuro dizer como tudo é outra coisa... As pessoas imaginam os seus próprios campos de rosas, e às vezes estou na frente dos campos como se morresse; outras, como se eu pudesse acordar. Por vezes tudo se ilumina. Por vezes canta e sangra, e às vezes deito coisas vivas e mortas no espírito da obra. Minha vida extasia-se como uma câmara de tochas!

Quem é Herberto Helder?

Herberto Helder
Herberto Helder


HH: Uma rosa peixe dentro da uma ideia desvairada. Sou uma vida com furibunda melancolia, com furibunda concepção, com alguma ironia furibunda! Sou uma devastação inteligente!


Porquê uma “devastação inteligente”?

HH: Porque os ossos e as veias vão de corpo para corpo, e despedir-se de tudo é um ofício inquieto! Tudo é uma musa, um poder, uma pungente sabedoria… As rosas que há nas palavras, as palavras que estão no alto como fungos luminosos, as palavras que gravitam em baixo no instável momento que avança e recua ao pé da eternidade - as mãos rodeando uma lâmpada, essas mãos docemente cobertas de sangue - tudo isso disposto para a inquietação de um ofício. Tudo é um ofício inquieto!


Qual é o motivo ou a origem da sua aversão pelos prémios e homenagens?

HH: As vigas da cabeça estremecem um pouco… Partem-se, aqui e ali, alguns arcos secundários. Uma vida pode tremer do princípio ao fim. É instantâneo, eterno! Mas é o homem que recebe a inspiração violenta. Minha boca está no fundo, móvel, coberta de sangue, a minha boca ressoa como as cavernas de um barco, a minha boca da minha vida é um ofício. O meu ofício de despedir-me um pouco engolfado na loucura. A minha tarefa inquieta de pôr a vida na sua oculta loucura! É um violento ofício, e no fundo desse ofício violento e puro, a boca está coberta de um perturbado sangue masculino, é a minha vida!

“Vou morrer assim, arfando entre o mar fotográfico e côncavo e as paredes com as pérolas afundadas”; abandono estes jardins ferozes, o génio que soprou nos estúdios cavados. É a cólera que me leva aos precipícios da mansidão, traz-me às janelas de um abismo atómico. O leve e abstracto correr do espaço… quando penso que vou dizer algo cheio de razão, a sombra cai da curva sôfrega dos meus lábios. A lepra na boca passa com a leve saliva, com o terror que há sempre no fundo informulado de uma vida.


Entre o verão e o inverno, qual é a tua estação favorita?

HH: O verão é de azulejo, e é em nós que se encurva o nervo do arco contra a flecha. Deus ataca-me na candura. E o leite faz-se tenro durante os eclipses… são únicas as colinas como o ar palpitante fechado num espelho. O verão é de azulejo, é a estação dos planetas!


Entre a vida citadina e campesina, qual é a que te fascina?

HH: Há cidades cor de pérola onde as mulheres existem velozmente. Onde às vezes param, e são morosas por dentro. Há cidades absolutas, trabalhadas interiormente pelo pensamento das mulheres. Lugares límpidos e depois nocturnos, vistos ao alto como um fogo antigo, ou como um fogo juvenil. Vistos fixamente abaixados nas águas celestes. Há lugares de um esplendor virgem, com mulheres puras cujas mãos estremecem. Mulheres que imaginam num supremo silêncio, elevando-se sobre as pancadas da minha arte interior. Há cidades esquecidas pelas semanas fora. Emoções onde vivo sem orelhas nem dedos. Onde consumo uma amizade bárbara. Um amor levitante. Zona que se refere aos meus dons desconhecidos.


Consideras-te pervertido?

HH: As mulheres existem para felicidade da grande fonte que todos pensam; a mulher é vida, cântaro cheio da força, sexo banhado no manancial secreto, esplêndida violência dos bagos de uva de onde nascem as raízes minúsculas do sol!


Além da Literatura, existe outra arte que circula nas tuas veias?

HH: Música… dedos conexos, inspiram nos objectos à espera, trémulos entrando e saindo tão poucos para tantos objectos do mundo e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega, pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva, e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes, palavra soprada a que forno com que fôlego… afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia, ponham muito alto a música e que eu dance, fluido, infindável, apanhado por toda a luz antiga e moderna, os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a paixão e eu me perdesse nela a paixão grega. Música, imagem do mundo aberta de têmpora a têmpora!


Toca algum instrumento musical?

HH: Esta mão que escreve a ardente melancolia da idade, é a mesma que se move entre as nascenças da noite e nas sedas que se escoam com a largura fluvial da luz e da espuma das grutas obscuras. Tantas figuras graves, de gestos nobres e de frontes tranquilas, abstractas... toco Afrodite, aquele museu plácido… tantas memórias da Grécia e de Roma, tão humana e sem tempo… tão subtil e tão provocante de pudor, de volúpia, de reserva, de abandono... gera(s) o sonho do amor!


Herberto é considerado “o maior poeta português da segunda metade do século XX e um dos mentores da Poesia Experimental Portuguesa”, acha que esse atributo ou título se ajusta a tua vasta obra literária?

HH: As pessoas imaginam os jardins a brilhar com seus olhos detidos no abismo, constelações panorâmicas dos dias internos, astros profundos nos casulos de ténues pérolas que racham a luz de alto a baixo e criam uma insondável ilusão do mundo. Sou uma vida com furibunda melancolia, acção de mímica em transformação; não sou actor que subtrai Deus e dá velocidade aos lugares aéreos. Minha vida é um ofício inquieto, amplifica o livro e levita pelos campos como a dura água do dia; é um ofício novo e louco, uma tarefa perene do coração sobre quanto se ignora objectos ardentes… uma doce pancada, pancada breve que a noite se move um pouco para a frente, para a eternidade. Eu diria que sangra um ponto secreto do meu corpo, e a noite estala imperceptivelmente ou se queima como uma face. Não sou actor que subtrai Deus e dá velocidade aos lugares aéreos!


A palavra ou figura de criança é recorrente em alguns teus textos, por exemplo nos poemas: AS MUSAS CEGAS VII, TRÍPTICO e COMO UMA ROSA NO FUNDO DA CABEÇA. Como foi a tua infância?

HH: Como uma rosa no fundo da cabeça, essa flor confusa, estrela ao cimo do êxtase que se difunde aos bocados na subtileza da verdade oculta na labareda das simplicidades silvestres. As memórias Ficarão para sempre abertas no coração, respirando a primavera imóvel de uma imensa inspiração!


Está a trabalhar em algum novo projecto literário?

HH: Ignoro qualquer coisa extraordinária… tudo assalta tudo; O dia roda o dorso e mostra as queimaduras, a luz cambaleia, a beleza é ameaçadora - não posso escrever mais alto transmitem-se interiores, as formas!


Que futuro podemos esperar da Literatura do Herberto Helder?

HH: A vida futura é um amargo delírio tocando o sangue das altas cidades que desenvolvem-se no meu pensamento quente. Ignoro qualquer coisa extraordinária… não quero subtrair Deus, prefiro cantar nas varandas interiores do esquecimento, linguagem para amar e ruminar o mundo!


Não sei como dizer-te que minha voz te procura

E a atenção começa a florir, quando sucede a noite

Esplêndida e vasta.

Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos

Se enchem de um brilho precioso

E estremeces como um pensamento chegado. Quando,

Iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado

Pelo pressentir de um tempo distante,

E na terra crescida os homens entoam a vindima

— Eu não sei como dizer-te que cem ideias,

Dentro de mim, te procuram.


Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros

ao lado do espaço

e o coração é uma semente inventada

em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,

tu arrebatas os caminhos da minha solidão

como se toda a casa ardesse pousada na noite.

[…]

Porque não sei como dizer-te sem milagres

Que dentro de mim é o sol, o fruto,

A criança, a água, o deus, o leite, a mãe,

O amor, que te procuram.


(Excerto do poema “Tríptico”, publicado 

Em: A Colher na Boca, 1961).


Por Siul Leumas

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