Sombrôzio Camaleão Ntimana e a verdade sobre as sombras

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Finalmente, abriu os olhos. Eram castanhos, enclausurados em lânguidas órbitas. Respirou fundo como se emergisse das entranhas de um buliçoso lago; molhou os carnudos lábios com a ponta da língua, tirou um black devil de um dos bolsos externos da balalaica preta, encaixou-o no túnel bilabial, tirou um isqueiro quase vazio  do bolso das calças, agitou-o, com o polegar, fê-lo libertar uma diminuta labareda e encostou nela o maldito cilindro composto por fanicos de tabaco e moléculas de nicotina, puxou o fumo e encaixou-o no peito, depois de alguns segundos, deu uma longa baforada, e, por fim,  respondeu à pergunta que há minutos eu lhe colocara.

"Fico aqui enfurnado porque não quero que a minha sombra me veja."

A sua voz era negra quanto os seus dedos indicador e médio calejados de tanto empunharem cigarros e absorverem inúmeras nuvens de alcatrão e nicotina pela superfície cutânea.

"O senhor odeia sua própria sombra?"

Enquanto ele digeria a pergunta, sem sair da esfarrapada armchair, pus-me a refletir sobre o ambiente em redor. Ocorreu-me que era Verão fervoroso. O céu dispensara as nuvens, o sol estendera seus longos e áridos tentáculos sobre a terra. Entretanto, nenhum feixe de luz pousara no alpendre – composto por inúmeras trepadeiras entrelaçadas no topo e nas laterais deixando apenas uma pequena entrada – em que estávamos abrigados, defronte do casinholo. Ademais, logo que ali entrara, um frio anormal invadira-me a espinha, levantara-me os pelos dos braços descobertos pela camisa de mangas curtas.

"Todo humano devia odiar a sua sombra..."

"Há algum problema com as nossas sombras, senhor Ntimana?"

Ele exibiu-me um falso sorriso. Seus dentes eram amarelos salpicados por uns detalhes a preto. Voltou a puxar do cigarro e fechou os olhos. Tirou a boina preta da cabeça. Além de ser calvo, todo o seu cabelo era puro neve a contrastar com a sua pele demasiado escura.

dir="ltr" style="line-height: 1.8; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt; text-align: justify;">O meu captador de voz já marcava quinze minutos de gravação; porém, ele ainda não me dera nenhuma razão palpável que justificasse o facto de ele viver enclausurado naquela escuridão baça que cheirava a mofo.

De repente, ele tossiu três vezes seguidas, coçou-se o descabelado quarteirão no meio da cabeça e começou a palavrear enquanto um bando de corvos raivosos gritava hasteado no topo daquele peculiar alpendre verde.

"Caro, jornalista, deixe-me cristalizar os factos. Isto é, dizer a verdade sobre as sombras. Não errou, odeio a minha própria sombra. Sabe, toda a sombra é inimiga do seu dono. Por isso que todo humano devia cegar a sua; nunca deixar que o visse e o acompanhasse."

"Desculpa a interrupção, Senhor Sombrôzio, queria saber como se cega uma sombra?"

"Cega-se a sombra vivendo como eu. Evitando a luz. O que digo é a mais pura das verdades, a sombra é um carrasco sem dó. O avesso da vida. Veja só, logo que alguém nasce ela já está aí a acompanhá-lo. A chorar por ele. A chorá-lo ainda vivo. A atraí-lo para a cova. Sim, é para isso que a sombra serve, convocar fatalidades e mais nada. Na verdade, é nas sombras que a morte habita e usa-as como portal para chegar aos vivos. Por isso, cuidado, senhor jornalista. Essa sombra que te finge companhias não vê o momento de te abocanhar. Todas as sombras são carnívoras, meu caro."

Terminou as falas. Levantou-se. Passou as mãos pelos bolsos em busca de algo, mas não o achou. Dirigiu-se à entrada do seu casinholo. Prestes a entrar em busca do maço de black devil disse:

"Senhor jornalista, peço para ir escrever com total nitidez a minha voz lá no jornal. Todo o mundo deve saber da verdadeira função das sombras. Por favor, destaca bem que a vida é uma arena em que as sombras dançam. E não se esqueça de colocar o meu nome em letras maiúsculas, SOMBRÔZIO CAMALEÃO NTIMANA."

E disse uma outra frase, mas só a entendi horas mais tarde, na redacção, quando ao redigir o artigo não achei a sua voz no gravador. O file referente àquela entrevista existia e tinha 15 Mb em tamanho, contudo, estava embutido apenas de silêncio. Nem mesmo as vozes dos corvos estavam lá. Os meus colegas riram-se de mim. E eu fiquei terrivelmente perplexo.


Ora, quando regressei da entrevista a este homem que habitava o escuro, todos os meus colegas me receberam eufóricos. Parabenizaram-me pela primeira aventura profissional. O chefe da redacção, dentre muitas coisas que disse, destacou que, todo o novo jornalista que eles recrutavam ali no Jornal Imprevistos mandavam entrevistar o Sombrôzio Camaleão Ntimana.


Mas, voltemos, quando Sombrôzio entrou no casebre em busca do maço de cigarros, meti o meu gravador na sacola e mantive-me sentado na velha armchair aguardando que ele voltasse para agradecer-lhe a disponibilidade. Minutos depois, vendo que ele demorava-se a regressar, decidi infiltrar-me no tugúrio. Procurei por ele entre aquelas quatro paredes enferrujadas. Não o achei. No entanto, não havia ali nenhuma abertura da qual ele tivesse se escapulido. Passados longos minutos de inquietação notei que havia uma gaveta numa das paredes, abri-a e não acreditei no que vi.


Na manhã daquele dia, depois de um sonho intranquilo, acordara eu ao ruído do celular instigado pela chamada de um número estranho:

"Alô!"

"É o senhor Mbereketo Matlombe?"

"Sim!"

"Está a falar com Amaral Marques. Director do Jornal Imprevistos."

"Pois!"

"Quero informar que o senhor foi seleccionado para trabalhar connosco. Sendo assim, deve se apresentar na nossa redacção daqui a três horas para assinar o contrato e começar imediatamente a trabalhar."

Há anos que terminara a formação e nunca tinha sido admitido a nenhum jornal. Deste modo, não podia desperdiçar a vaga. Cheguei à redacção uma hora antes da hora marcada. Depois de assinar o contrato, o director deu-me um gravador, um endereço e pus-me à estrada a temer que o sonho intranquilo que tivera antes da sua chamada se tornasse realidade.


Aliás, eu dizia que, passados longos minutos de inquietação, notei que havia uma gaveta numa das paredes do casinholo, abri-a e não acreditei no que vi. Retirei-me alarmado ao notar que aquilo não era uma residência, mas sim, uma tumba em forma de casota que no topo da entrada exibia o nome do homem que eu acabara de entrevistar e, a sua última frase, quando ia procurar o maço de black devil fora:

"Na próxima encarnação não irei morrer. Já descobri como repelir a morte: nunca deixar que minha própria sombra me veja."


Por Fernando Absalão Chaúque



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