Não me neguem! Repito: não me neguem a filosofar quando o título que nos dá acesso à poesia de Bia é já filosófiico – Sonhar é Ressuscitar. Entendamos: sonho enquanto metáfora do renascimento – a volta do morto ao mundo da existência. Voltar à casa – lugar de partida e do retorno; lugar de acesso ao interior do ser – quando o mundo parece estar a desabar em grandes proporções; olhar para o mundo e tudo nos parecer trágico, insólito, absurdo, a bem dizer, náusea. E a casa, onde rodopia o silêncio sossegado, confere-nos o lugar da reflexão quando a noite se adentra com seus mistérios. Quem nunca morreu alguma vez? Eu, à semelhança de Bia, já morri repetidas vezes. Aliás, todos já morremos algum dia. Não morrer uma morte destrutiva; mas aquela morte estantânea porque ao teu ver tudo ao teu redor se imobiliza – perdeu sentido – como se o enferrujamento do ponteiro do relógio imobilizasse o tempo e as coisas; segues a alçada, atravessas a estrada e os estrondos da indústria automobilística que denunciam o triunfo do progresso não inrompem o tímpano e assustas-te com o nariz do automóvel a ceder aos caprichos do atrito rente ao teu monumento corporal. É uma morte motivada: talvez por perder um grande amor – aquela pessoa sem a qual nada vale a pena trilhar a vida; talvez por uma busca já cansada de um futuro melhor; quem sabe ainda pelo degredo que a vida nos oferece...em suma, aqui qualquer coisa que nos acomete por dentro pode levar-nos a essa morte intrínseca, porque tudo dói: o amor, o beijo, o sexo, a miséria e outras coisas. E o sonho aqui, chega-nos como um balão de oxigénio para nos devolver à vida «ressuscitar» depois do flagelo e da insensibilidade humana. Gosto de pensar no título desta obra como uma técnica que Bia usa para «atingir o cerne sem ferir a casca».
Ao lermo a poesia de Alerto Bia, como ele prefere ser chamado, é possivel entender que a sua escrita gira em torno de três temáticas, designadamente, o amor triunfal que se configura como lugar de conforto; a nostalgia da infância perdida; e o tédio pelo degredo humano das gentes da sua terra Moçambique. Esta escrita, confere ao poeta um epíteto de um escritor influenciado pelas estéticas modernista e neo-realista.
Aliás, que é o escritor fora do seu tempo e circunstância? Penso que é impossivel pensar numa obra de arte que se concebe fora daquilo que Gasset chamou de Circunstância – o lugar do acesso ao mundo do homem; aquilo que serve como força motriz do escritor – que se ladeia à ideia dos Três M de Nietzsche articulados em sub-universos simbólicos como elementos que «influenciam as formas e os conteúdos».
Se é impossível conceber a escrita fora da circunstância de Gasset e a descendência temporal do escritor que Hegel nos ensina, há que considerar que a poesia de Alertobia nasce das fotografias melancólicas que o seu tempo lhe configura. O poeta é filho do seu tempo e os objectos de arte são concomitantemente frutos do tal. Esta óptica de se preocupar com o meio social circundante, insere-se àquilo que o mexicano Otávio Paz diz sobre a poesia – que nascendo de diversas partes da experiência humana traduz-se na voz do povo. Este pensamento translada o autor à responsabilidade que os estetas soviéticos de 1939, reagindo à burla crescente do espírito capitalista do seu século, olham para o autor como aquele capaz de traduzir o sentimento daqueles que não têm voz – as massas i.e. o proletariado – e aqui o autor se configura como porta-voz do povo; aquele que nascendo num meio social e vivendo o seu drama, fica sensível e o dá voz. E cá entre nós os poetas da Náusea, a bem dizer, poetas Pós-2000, o que nos move? Estarimos nós insensiveis ao flagelo da nossa época? Penso que fazê-lo estarimos a trair o social – lugar que não só nos é ponto de partida, mas tambem lugar de chegada, pois é dele que a nossa escrita emerge. Há que rebuscá-lo nas suas vertentes multifacetadas; na sua dimensal política e antropológica, pois esta nação nasceu do sangue dos dedos dos poetas – os nossos avôs que nos ensinaram a usar a escrita como artefacto de repreensão; negação.
É nesta mania de o poeta se assumir como porta-voz da colectividade que a obra ganha uma função social se quisermos citar o poema PAREM! que diz: Porque vós sois assim?/Pés de vocês deslizam pra o mal/Se apressam a derramar o sangue./Até quando vós amareis a estupidez?/Convertei-vos/ (...) No centro, crepitam balas de bazucas/No sul, as secas assolam demasiadamente/O rosto de Moçambique irado.
São estas e outras situaçes que acometem o autor. E quando o homem – qualquer humano – se hostiliza no seu mundo a infância torna um lugar que carrega uma seiva saudosista. Alias, Alfredo Antunes, ao escrever sobre a Saudade e o Profetismo em Fernando Pessoa, olha para a infância como lugar «onde se despeja a dor da limitação e da contingência, misturada com a esperança da integridade. Ela é um tempo, começo e fim, passado e futuro. Lembra-se como felicidade possuida e deseja-se como reconstrução a haver (...) [ela é assim] sempre um sinónimo de inconsciência, segurança, pureza, felicidade (...). E esta nostalgia da infância perdida, Alertobia evidencia-a no poema INFÂNCIA que reza o seguinte: Infância/é procurar felicidade no tempo/Ido já faz um tempão/ (...) Lacrimejei de medo das cousas/ Já estou entristecido de saudades/ (...) Saudades dos tempos/ Da infância/Mal aproveitada.
Mas a infância, tal como se alude, é um tempo já ido que só pode ser vivido filosoficamente – na memória. É nesta perspectiva que o poeta se socorre nos braços do amor para adocicar os seus dias agrestes. São tantos os poemas que delucidam o exposto, tal é o exemplo do poema OIRO.
Quero, nestas linhas derradeiras, dedicar as minhas palavras aos poetas aqui presentes, àqueles que projectam trilhar o caminho tortuoso da arte verbal, as palavras de dois estudiosos com mentes de luxo aos quais devo a minha admiração imanente, (i) [D. Bahule] ao trazer-nos os conceitos de «pequenos nadas» enquanto categoria seminal através da qual a arte sobrevive. Pormenor este que mora no sicial – lugar que o poeta nao deve dar costas – pois é lá onde reside a vida da arte e lugar no qual se deve buscar; o segundo conceito é o da «economia/matematização da palavra» prática que segundo ele – e confesso partilhar o mesmo phatos – falta a muitos poetas – a maneira de ir longe sem percorrer o distante. Primeiro [diz ele] – paixão. Segundo – amor. Depois – fazer da palavra o seu habitat – moradia; seu lugar de reconciliação e de criação, mas para tal (ii) [Mac. Donald] a pessoa tem de ter um gosto especial pelas palavras. (...) tem de querer enrolar-se nelas. Tem de ler milhões delas escritas por outras pessoas (...) [só assim começa] a conhecer-se a si própria tão bem como a conhecer as outras pessoas. Disse John D. Mac Donald no prefácio d’ O Turno da Noite de Stephen King. Ou seja, a escrita deve ser antecedida por uma leitura diversificada e consciente de autores de diferentes lugares e épocas. Mas não basta. Deve respirar a palavra; comer a palavra; sonhar a palavra; namorá-la; mergulhar nela como um banhista; conhecê-la e apropriar-se dela como um marrinheiro. Só depois volta à forja e dobrá-la com a paciência d’ um ferreiro.
E é assim que se-vos é apresentado a poesia de Alertobia que se entorpe como um corpo que se joga ao mundo da tortura – e aqui a tortura gira em torno daquilo que chamamos leitura crítica ou metacrítica.
Por Harani MAHALAMBE