Eu Beijei Covid-19

 

Eu Beijei Covid-19
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Sempre que acordava pelo rádio, televisor e, aliás, primeiro, pelo telefone, pois a primeira coisa que eu fazia era verificar as mensagens no WhatsApp, ver vídeos e publicações no Facebook e/ou Instagram e só depois arrumava o meu pobre quarto, limpava os dentes, entre outras actividades acompanhava que os casos de infecção e morte por Covid-19 aumentavam exponencialmente. Esta pandemia, naquela altura, ceifava vidas, repito, vidas. Não escolhia as pessoas de acordo com a cor, raça, etnia, muito menos o cargo que este ocupava, nem mesmo se se tratava de político ou não. Havia uma moda a que se assistia no país, que remontava desde a independência (ou antes?): viajar ao estrangeiro para tratar de qualquer doencinha, qualquer febrezinha, tossezinha… Políticos, principalmente, ainda se identificavam com aquilo, mesmo assim, a Covid-19 não lhes advogava. Dentro ou fora do país, num hospital público ou privado, porque se descuidaram, sucumbiam e, tal como foram, porém sem vida, voltavam à sua terra natal, Moçambique, para serem encaminhados aonde os mortos são enviados. 

O meu telefone vibra e, de imediato, pelo topo do ecrã, vem a mensagem: “Baby: Amor, bom dia. Estou com saudades. Já não aguento mais...” 

Ponho-me a responder:

— Wisa, eu também sinto saudades tuas. Faz um mês que não nos vemos, só nos falamos pelo telefone.

— Sim, amor, mas isso não é suficiente. Eu sinto saudades do teu beijo, do teu toque, das tuas loucuras entre as quatro paredes.

— E eu? Dos teus arranhões, dos teus chupões que, embora me obrigassem a vestir roupas estranhas para se não verem, a cada foda que tivéssemos só me viciavam.

— Eich, amor!, quanto mais falas, só me deixas molhada. Nem imaginas!

— Imagino, baby, tu és muito sensível. Só desta conversa, se estivéssemos juntos, estaríamos aqui a rebolar pelo quarto inteiro. A cama, o chão, as paredes estavam todos pintados ou húmidos pelo nosso suor e amor.

— Eich!, baby... Chega...

— Chega mesmo!

— Não chega nada aqui. Aliás, chega de falar disso. Temos que ir à prática.

— Amor, prática só depois disto passar ou, a menos, fazeres o teste!

— Fiz o teste antes de ontem, saiu o resultado, é negativo.

— Tudo bem, mas o teu pai tem Covid, baby. Voltou da África do Sul infectado.

— Sim, ele tem, mas eu não. Não é?

— Tudo bem, e eu? Ninguém nos garante!

— Amor, eu não quero saber. Às catorze horas irei aí. Sei que tu estás a trabalhar a partir de casa e que às catorze, os funcionários públicos já despegaram... —  Wisa até se esquecera de que, naquela semana, eu trabalhava a partir de casa.

— Baby?! — nesse interlúdio, do mesmo topo do meu telemóvel onde veio a primeira mensagem da minha musa, Wisa, vem uma mensagem muito curta em baixo ao seu nome, que o tinha gravado com três corações flechados à frente: “Offline há 1min...”

Esta última mensagem era sinal de que, pelo sim, pelo não, Wisa viria à minha casa praticar toda a teoria invocada na conversa inicial.

Porque no fundo ambos estávamos sedentos em trocar carícias, amassos e, acima de tudo, satisfazer o libido, não havia maneira, meus caros e minhas caras. Feito um empregado obediente e bem pago, aliás, feito um Mordomo, arrumo o quarto e vou preparar-me para entrar de serviço, online, pois que a minha escala no Ministério das Finanças era de trabalhar a partir de casa naquela semana.

Trabalho, todo eufórico, porque, mesmo com a Covid-19 a ameaçar a todos, por opção própria, a minha musa infringiria a regra de casa. O Decreto do Conselho de Ministros, como disse no princípio, era devidamente divulgado, junto das suas medidas, através dos mass média, mas as vontades…

Chega a minha hora do almoço, converso com muita gente, incluindo Wisa, e ela, a todo o momento, a dizer “até logo”. Incrivelmente, este “até logo” vinha com as suas fotos, em algumas, ela nua, noutras, seminua. Aquilo era mais que aliciar, era catucar um leão com varra curta, era testar a minha capacidade de gerir o camião que se me exibiam; aliás, Wisa, talvez devido à quarentena, tendia a ficar boa, melhor. Era uma autêntica “bala”, capaz de destruir qualquer homem sedento na mira.

Dizem que o que é bom dura pouco, mas, confesso, quanto mais a hora catorze demorava a chegar, só me vinha à mente a minha boazuda, aqueles lábios carnudos de que tanto gostava de os beijar antes da maldita doença se instalar no meu país. Mas porque o trabalho muito exigia, as horas passaram-se e, de súbito, oiço a voz da minha gata em conversa com a minha mãe.

— Mãe, boa tarde!

— N'wananga, akukala! (Minha filha, sumida!) 

— Nikona, mamana! (Existo, mãe!) 

— Hi... Kumbe hidrona Covid driku kalisaka? (Ou é a Covid que te faz sumir).

— Ina, mamana! (Sim, mãe!).

— Mas nikona! (Mas existo!) — nesse interlúdio, saio à casa de banho. O nervosismo, ou a ânsia de estar com a minha pessoa tirava parte do meu à-vontade. Mas, uma mijada faria bem, para seguir com a missão (im)possível em tempos de Covid.

— Baby!

— Olá, meu bem...

— Cheguei... — Já estávamos no quarto, porta fechada, cortina puxada e o som na companhia...

— Estou a ver...

Tirei-lhe a máscara, beijei-a. Abracei-a e, sem demora, voltei a selar a boca dela com um beijo intermitente, durante o qual só sentia o calor da sua respiração na minha face. Enquanto isso, os nossos corpos ficavam tal como estavam quando viemos ao mundo. Estamos na cama e, mais do que conversámos de manhã no WhatsApp – no lugar de humedecer os lençóis – molhámo-los. O chão, todo de tijoleira, ficou também alagado, ajudando a tijoleira a virar espelho no lugar de simples tijoleira. A parede frontal, que cedia espaço à porta, com marcas separadas de suor. O meu pescoço e o dela, cheios de chupões que, mesmo que doessem, com o fervor do nosso sangue e os rastos de orgasmos atingidos há minutos, sequer sentiríamos dor.

— Ufa! Isto é bom. É demais. Se existe algo que Deus não falhou em criar, é o sexo. O encontro entre homem e mulher. My God! — Wisa invocava, naquele lugar imundo, uma figura Santa e digna de respeito.

— Como não, baby?, faz um mês que não molho a o biscoito.

Depois de duas horas trancados e de trabalho sexual a dois, o meu irmão caçula, de quem a Wisa tanto gostava, bate à porta, após saber que a sua cunhadinha estava em casa.

— Mana Wisa, mana Wisa...

— Olá, meu anjinho...

Wisa, em fracções de segundos, procurou pela blusa que se tinha perdido entre a confusão de roupa que assistia à nossa luta sexual. Veste-a e tira uma capulana da sua bolsa e sai para carregar o menino. Conversaram. Eu saí à sala. Depois ficamos umas horas e, ao escurecer, acompanhei-a.

Passada uma semana e alguns dias, a irmã da Wisa, Marelu, liga a informar que ela estava mal e que estava internada. Acrescentou ainda que a clínica recomendou que todas as pessoas que tiveram contacto com ela fizessem o teste e que ela não lhe disse mas sabia que no dia em que chegou à noite a casa delas, tinha ido ter comigo. 

Eu, na verdade, no dia anterior a nossa cópula, de manhã, tinha acordado com dores nas articulações, febres, mas a minha mente negou associar tais sintomas a Covid-19. Fui ao hospital, levei o meu irmão comigo e, obviamente, testei positivo e o meu irmãozinho também. 

Na minha casa, éramos dois. O meu irmão, em dez dias, já estava melhor. Eu, pelo contrário, não melhorava. Fui internado no Hospital Polana Caniço, onde sucumbiu um dos escritores de cujos textos sempre gostei de ler, Calane da Silva. Ah, volvidos catorze dias, fui tido como óbito. Morri. Beijei Covid-19. Fiz tudo o que a falta de paciência me excitou a fazer. Agora, estou aqui, no Cemitério de Michafutene, ao lado da zona destinada aos Oficiais das FADM, enterrado, morto por falta de paciência e, garanto-vos, a terra não é nada leve!

 

Por Carlos Da Graça 

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