A ARTE SUAVE DA PALAVRA de Morgado Mbalate e Ilustrações de João Timane
“Minha escrita é grávida de sol”.
“Quando escrevo, / traduzo os desígnios de Deus /guardados no ventre da minha terra”.
“Busco / inspiração nos perfumes da natureza”.
“A poesia foi sempre fruto / da alegria e da tristeza do mundo”.
Morgado Mbalate, in A Arte Suave da Palavra
Em “A Arte Suave da Palavra”, poderíamos isolar palavras-chave como Humanidade, Deus, África, Moçambique, tomando a pátria do poeta como retrato do Universo e este como lugar sagrado do poema.
África, berço da humanidade, assume-se na voz poética de Morgado Mbalate como berço da poesia universal, nascente fértil dos seus versos – “Meu olhar / sobre o mundo / é sempre inaugural”.
Parte integrante da terra, do mar, do céu, o sujeito poético caminha, neste livro, de mãos dadas com a Natureza, com seus matizes e gentes, canta o sol, a lua, o arco-íris, numa poesia dos sentidos e das sensações, sempre em agradecimento e consonância com o plano do Criador. Deus está presente em cada instante, quando, das coisas mais ínfimas observadas, algo engrandecido surge, objecto de um amor poético universal e transcendente.
O sujeito poético consubstancia o HOMEM, atribui-se a si mesmo, como homem moçambicano, africano, o papel de espelho da humanidade, imagem de todos os homens, atravessando os tempos, desde o sopro primordial.
A escrita poética de Morgado Mbalate reveste-se de humanismo panteísta com princípios cristãos latentes em cada sílaba, perseguindo a paz fraterna, a harmonia material e filosófica com o universo.
Através de uma linguagem simples, mas poeticamente rica em metáforas, os animais, os astros, as forças da natureza, os elementos, são notas principais num cântico à existência, a Moçambique libertado, não olvidando nunca as dores no processo de fundação do país e de crescimento da nação, que valorizam o sentimento de alegria permanente, porque derramada sobre toda a terra.
No poema vive a UTOPIA. Aqui se encontram as criaturas dos ares, das águas dos mares e dos rios, da terra, consubstanciando a harmonia na Natureza-Mãe moçambicana, ligados umbilicalmente ao coração do HOMEM de Moçambique, espelho utópico da Humanidade no Universo.
No poema voa a ave, nada o peixe, transborda o rio, ronca o mar, nasce e põe-se o sol, senhor da lua, moram todos os astros.
A escrita veste-se com suavidade de “pétalas de água” e nunca com “febre de vento”, ao ritmo dos sons enfeitiçados das florestas, das marés e das deambulações dos rios. Morgado Mbalate oferece-nos uma poesia acalentada pelo azul do céu espelhando-se na ondulação do Índico, oceano-
-fonte de vida e de salvação – “O mar é o paraíso / que me deixa / mais perto de Deus.”
É a poesia que ilumina os dias do sujeito poético e com ela recria o mundo, em suas próprias palavras. Do poema fita e absorve o universo que o rodeia (microcosmos), assumindo este o lugar do planeta terra (macrocosmos) – “Da varanda / do meu poema / abraço / a humanidade inteira”. O poema é a luz que aclara qualquer sombra pairando sobre o mundo e nele se conjugam a “poesia dos outros” e a do sujeito poético, uníssona voz que atravessa fronteiras, chega ao mundo, porque nasce das vozes do mundo – “Quero um amor / que renove / a alma do mundo”.
“A ARTE SUAVE DA PALAVRA” alberga uma poesia que nos conduz à “infância do homem” onde moram todos os sonhos coloridos, sem o peso da realidade que a razão adulta encripta. Uma poesia que enfatiza o maravilhoso na “idade da inocência”, em que se vive, simplesmente, colhendo a alegria súbita do momento, na espontaneidade do que é natural, despidos de máscaras sociais construídas na teia dos interesses políticos e económicos que vão castigando os povos e o seu meio ambiente, com guerras e poluição devastadoras, revelando o esqueleto doentio do mundo industrial e tecnológico moderno. É com “os olhos do coração” que o poeta persegue o sentido da vida e canta a natureza em seus versos límpidos e leves como o adejar da borboleta sobre a flor.
Há nestes textos uma constante revisitação dos lugares e das experiências naturais e espirituais da infância do poeta. É nesse espaço-tempo que se sente livre e redescobre o alimento da alma do poema escrito “com versos de sangue” que traduzem, nesta poesia panteísta, as dores da alegria na origem da vida. “A realidade triste / do mundo atual / não apaga / o sorriso da minha alma. / Tenho os sonhos / da minha infância guardados / em tudo que amo e amei”.
Através de seus versos curtos em diálogo com outros mais longos, criando ritmo dissonante que dá forma à consonância da voz poética, o poeta define-se e define seu papel de “enviado” à terra para travar uma espécie de predestinação onde reina a morte pela guerra, pela fome, pelo abandono dos homens, fazendo uso da palavra poética sagrada, luminosa, enraizada na esperança do porvir. Ao sol de uma era de renascimento em harmonia cósmica, no voo liberto das aves – “Tudo escrevo / com letras / de pássaros e borboletas”, o poeta é “fazedor de sonhos” num mundo “repleto de palavras sem cor”. É o poeta que afirma “Tudo na minha escrita / é fruto dos meus sonhos”.
A poesia redentora de Morgado Mbalate transporta, em si, alento e cura para os males da alma, porque construída por “desígnio de Deus” – “A bondade / do meu coração / é um sol que beija /a pele do mundo”.
É uma poesia alicerçada nas lições da História, nas mensagens dos antepassados, no regresso à infância, ao coração e ao amor da mãe-natureza. É uma poesia do “eu-no-e-com-o-mundo”, do “poema-em-Deus-e-Deus-no-poema” – “Deus mora / na beleza / reluzente da simplicidade / da minha escrita”. E, assim, o poeta escreve seu destino – “Deus prefere / entrar na minha / casa quando escrevo”.
Há um misto de Alberto Caeiro e de Manoel de Barros nesta poesia da “simplicidade dos seres e das coisas”, mas assente em princípios filosóficos de observação da natureza e dos homens, ponte firme entre passado e presente, entre ruralidade e vida na urbe, para a construção poética da utopia... com Deus (?).
Enquanto lia “A Arte Suave da Palavra”, também eu regressei aos caminhos da infância, na saudade de aí permanecer, correndo atrás de borboletas amarelas que batiam asa no rodopio de meus olhos e, como o poeta, “aguardo / a ordem / de um mundo novo / para mim e todas as coisas”.
REGINA CORREIA