Covid-19 - Conversa com Ernestino Maute

Ernestino Maute (no Microfone)
Ernestino Maute, nas suas proprias palavras, nasceu na primeira república, em plena aurora de um dia: em 85. Guarda no alcatrão da memória a sua infância passada a beira de uma linha férrea, em casa dos seus avós. Estudou Ensino de Português na Universidade Eduardo Mondlane, mas antes tinha feito com sucesso o terceiro ano do curso de Literatura Moçambicana, na mesma Universidade.
 Em 2016 experimentou-se num caderno em forma de antologia, intitulado “Desenha-me a tua liberdade”, para posteriormente vencer o 2º Concurso Literário Alcance Editores que lhe permitiu editar e publicar “ Cicatrizes e Uma Alma Reclusa”, em 2018. É docente de língua portuguesa na Escola Secundária da Matola. 

É com ele que hoje conversamos tentando perceber através das suas palavras a possível relação entre o isolamenro social e a arte. Boa leitura!

1. Quanto a ti, enquanto poeta ou pensador e ser de relações consigo, o mundo e o outro, o que implica este isolamento social?

É a catarse que se impôs sobre o Homem, para que vislumbre com poesia as cores da morte forrada de véu da vida que nos detém. Era preciso que o alarme tocasse para o fim do sexo no relento da miséria. Redefiniu-se uma ordem social que poderá honrar o ar que respiramos e a água que bebemos sem darmo-nos conta da génese. 

2. O mundo há meses corria como se o seu motor jamais pudesse e nada o podia parar. Os passa-tempos eram desnecessários que nem interessava procurar pois já existiam. Agora, será que a vida existe em plena lentidão dos dias? Ou ainda sente que o mundo marcha como sempre marchou?

A vida é uma sucessão de recomeços. A mesmice é a cirrose hepática do inexistente. Ou seja, regressando ao pó da estante da casa, no colo do velho Hungulani: a vida é uma anedota permanente!” E , “nesta lentidão dos dias” ejaculamos no sofá do tempo mendigando milagre a um simples pastor de ovelhas. Porém, quando retomarmos à baila, alguém empoleirar-se-á no tripé do balcão de uma barraca levantando o nariz com um copo cristal repleto de vazio, e mais uma vez a meretriz proporcionará gemidos fingidos algures na berma da noite. Limpos ou sujos,voltaremos a lama!

3. Onde tem buscado as forças para poder viver mais um dia desses dias que parecem uma extensão infinda do apocalipse? Que papel tem a arte para sua vida nesse cenário?

O mar das minhas forças ondula no terraço da imortalidade artística; as sinfonias e precursões do batuque na partitura, o pincel roçando a nitidez da tela, e o verbo mendigando a forja, afagam-me a alma; e os meus filhos, claro, são a bobina na máquina que dá cosedura à metálica agulha da existência – olha, ontem sonhei-me morto, no despertar da manhã os meus filhos choravam-me – de como se chora num velório – afinal, decalcavam o pavor no rosto das vielas do universo. Dei-lhes costas para amarrar o nó desta conversa. A dor é a luz da ferida! 

4. Acha que esta pandemia tem algo a ver com punição?

Penso que, em algum momento Deus demorou-se na pia, de tal modo que o diabo aproveitando a ausência do Criador, peidou para a gente a partir do parapeito da varanda celestial. Em fim, somos seres em permanente metamorfose, tudo é legítimo enquanto a vida for experiência genuinamente ímpar.

5. O que mais tem pensado nesses dias de isolamento social? 

Penso na minha sublime infância embrulhada no alcatrão da memória: aqui exprimi a essência de ser bobo. Muito que vejo hoje é a repetição adulta às vezes caduca do que a vida me soprou na miniatura do caudal do rio interior. Só na infância é que se vive, o resto é um arrastar do tempo até que a lama nos unte a persistência.

6. Quando a corda enfraquecer, quando tudo passar e a aurora trouxer novos dias, calmos e coloridos, o que pensa fazer depois?

Nada! O nada é muito para quem vive combalido pelas agruras do mundo. Se calhar passarei a escrever os incisos dos meus textos no umbral de um cemitério para descortinar de perto a morte que hoje me chega ornamentada pelas estatísticas na telinha-corcunda da casa. Talvez fume um cigarro pelado, encostado ao epitáfio de uma campa alheia. Porra, tudo isso é nada. O nada estruma a felicidade de quem é nada!

7. Do jeito como estava o mundo antes da Pandemia do covid-19, acredita que ele possa vir a mudar? Os humanos ficarem mais humanos? Darem mais amor ao próximo, acolher? Ter a ética da responsabilidade como fim último?

O mundo não será o mesmo. A pandemia estabeleceu uma nova ordem social. Acerca do isolamento ou confinamento, sabe-se que os melhores hinos de Davi foram escritos no isolamento. Estar só é uma sapiência para dominar estar com o outro, é a excelente forma de se mergulhar na penitência, ou seja, o distanciamento sarou algumas feridas. E, quanto a arte, esta continuará movendo os remos para que a canoa do humanismo se locomova no meio da lama.

8. Qual a lição desse isolamento social para si? Que ensinamentos se pode tirar dele?

Aprendi que: a vida é uma lamparina acesa no relento, quando não se apaga por escassez de petróleo, o vento incumbe-se de fazer das suas. É a poesia da vida!

9. Nietzsche assumia que a arte existe para que a verdade não nos mate, sob esta ideia, tem visto a arte assim? O que tem escrito e que tem amenizado as tuas dores no mundo, principalmente nesses dias?

Virei um vagabundo da escrita. O momento é profícuo, daí ter muitos pontos de fuga. Ando a drenar versos às madrugadas, e às tardes fico a prosar dores, mas quando não dá, estendo-me na varanda da minha casa (a minha catedral) soprando uma flauta enquanto componho um embalo rítmico ou roo a unha para que o tempo me escreva, mas sempre tendo a infância como o sémen de tudo. 

10. Se esta pandemia significar a extinção da Humanidade, diria que valeu a pena ter vivido?

A grande vaidade de um jogo reside no apito final, aí os adeptos tratam de peneirar o resultado, dando mérito a uns em detrimento dos outros. A vida vale pela dor, o prazer é uma simples alternância das estações, para aguentarmos a carga. O fim é o embrião de um começo!


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