Hoje, mãe, escrevo-te com lágrimas apontadas para o alto, choro ainda porque há gordura de rancor presa na minha garganta.
Desde que o imbecil de Julião, meu pai, e o meu primo Arlindo inventaram a minha morte, juntei tanta saudade que, até agora, falta-me algum tempo para juntos irmos lançá-la no mar como aqueles penedinhos, peixinhos mortos, aqueles sapinhos encardidos do Singathela e, nós, caminhando descalços a vermos essas estranhas aves a voarem. Sossega, mamã, ainda não morri, foi tudo manha do meu pai com pretensão de acabar com a senhora e assassinar essa gana de ser mãe que a mamã possui; filhos nunca morrem, apenas descansam o corpo para poderem ser mais anjos de verdade, mãe, como sempre tem dito, - filhos sempre nascem anjos. Senti muito naquela noite da quarta-feira, o nosso bairro, Patrice Lumumba, estava tão calmo, nem um pio de gente, a mamã estando no mercado fajardo a guevar, meu pai e o Arlindo a acharem prudente me amarrarem os braços, enrolarem minha boca com fita isoladora, darem uma sova nas costas, me meterem nesse saco que mamã tem posto os alimentos e me jogarem sem comiseração no porta-mala do carro.
Oh, antes acreditava que a vovó Rita voltasse de Tete, a mamã bem sabe que não tenho ido com a cara daquela velha, mormente quando vinha directo a casa, os meus ossos brotavam sangue, mas de raiva, talvez porque na última vez que estivera, estava amortalhada de demônios; recorda do cuspe, do imbróglio e daquela bofetada que me dera que até a mamã pelos nervos lhe atirou a pata na cabeça, ficou o dia todo a debicar a velha, e, no tempo que menos esperávamos, era a pata a rodopiar para o quarto, endemoninhada; ainda me custa a raiva, mamã, por isso que o terço dela que desvaneceu no dia do teu aniversário, fui eu que o escondi, veja na terceira gaveta dentro de uma calça azul, estava muito exasperado, sempre usava nossos animais para exorcizar os seus maus espíritos que trazia de Tete. Eu sei que a mamã deve estar a pensar que lhe devo respeito, mas de pessoa não tem nada, mamã, nem chega a ser bastante para o meu ódio, perdão por exaltar;
não gosto que a mamã chore, às vezes, dói-me tanto imaginar as tuas lágrimas, e, eu, aqui, no porta-mala, tudo provido de escuridão, com a alma em quebrantamento, uns bocados de morte a contar os dias pelos dedos; foram três dias de desolação, três dias de fome, três dias vendo a morte vindo com livro de presenças, enfim, enquanto pensava, ei a luz, tínhamos chegado, um lugar estapafúrdio, fui encurralado pelas mãos; o meu pai estava de óculos escuros, um goro vermelho que cobria a testa, luvas pretas e conspurcadas; tinha também uma camisola vermelha tal qual essas que algumas progenitoras usam para enfardar fetos após infanticídio.
O Arlindo, meu primo, sorria, solto, zombando da minha cara, e, me apunhalava com chapadas na nuca, dizia para que fosse esperto;
repentinamente tiritei, cinco homens mascarados, apareceram, todos quietos, armados, me carregaram pelas calças à força, tentei resistir, mas não evitei que me encurralassem até numa frondosa árvore; mãe, não quero lembrar, fervo como ferve a senhora, sinto também o gume das minhas palavras, vi um homem a ser castrado vivo e, cada grito, era um dedo a provar a catana; alguém tirou-me a fita da boca, me obrigou a ver, mãe, a ver a cabeça daquele homem, se calhar inocente, a tombar tal e qual tomba a saliva de uma língua ávida, as lágrimas foram maiores que eu, mãe; mas estou vivo, é o que importa.
O meu pai, contou tanto dinheiro e lhes deu, deu àqueles cinco homens dos quais te falei, deu com um sorriso de missão cumprida, deu como se fosse do seu consentimento executar pessoas, mãe; contudo, depois foi embora, foi embora de sorriso aberto!
Vi um aceno para o meu primo que chegasse perto de um homem barbudo, nojento, uniformizado, rosto cicatrizado e cabelos desgrenhados que, violentamente enchoçava uma senhora de idade, com cabelos mal feitos, a jogou com rispidez no chão; ela toda caída, sofrida, sem força sequer para gemer, meu Deus, mamã...estou cansado, nem quero mais te contar, haja humanidade, os meus olhos se fecharam por peso de pena, pois o meu primo atravessara uma arma branca pelo pescoço da velha, tudo, tudo, mãe, dividido, ao seu lado, um senhor de uniforme, botas manchadas de sangue, levitou a cabeça sem corpo entornando sangue num copo plástico, um terror, tortura imensurável; bebeu, bebeu do sangue e, aos murros bebi também, mamã. O meu coração vomitou pânico, uma tempestade escassa ao raiar do sol, eu juro, mãe, que recusei até aonde pude, foram tantas e outras coisas de matar a alma, até cheguei a me (in)existir; matando inocentes, como, não sei, há coragem bárbara que me cresceu, mas fique tranquila, ainda não morri, mãe. Fale da nossa pata, essa de vinte anos que comia demónios da vovó Rita, ainda funciona colocá-la no peito da velha de quando em quando na manifestação dos seus espíritos?!
(Risos)...
Preciso voltar, mãe, aqui estamos sempre a andar, a matar, a acender e, eu, não tenho muita vida para tamanhas barbaridades. O papá não mais voltou, desde naquele diôoo, sexta-feira...o meu primo carrega tanto defunto que talvez lhe seja muito difícil morrer, é, mãe, é muita frieza num jovem como o Arlindo!
Não me vou mais alongar muito, dizem para me apressar, a placa nos leva à ilha do Ibo, nunca vi nem pela televisão; tomara que pare de chorar, mamã... saiba que o teu filho, mesmo com o corpo queimado em Quissanga na sombra da frondosa árvore, ainda vive.
Por Luís Nhazilo