o ardina de sapatos gastos


o ardina de sapatos gastos
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o ardina suava e usava a palma da mão para enxugar o suor e tornava a limpar as mãos na lateral das calças castanhas de um vinco afiado. a violência do calor oscilava nos quarenta graus celsius.

na dimensão das suas ínfimas posses diga-se que vestia com primor, todavia não trocava de sapatos. há meses que viriato desbravava caminhos, prestava o seu árduo trabalho de distribuição de jornais às instituições públicas e privadas – que mantinham um vínculo contratual com aquela distribuidora – que se espalhavam pela urbe de lés-a-lés.
somava dois anos que terminara a sua licenciatura em sociologia, e viriato sem perspectivas nenhumas, fazia como o mundo todo o faz – lamuriar o desemprego – até que um dia, graças ao amigo que lhe segredara da necessidade de um ardina numa printerpress, no coração da cidade, foi para lá que cossa conseguiu o árduo trabalho de ardina, sete meses atrás, sem meio de locomoção para descrever a geografia da cidade.


antes que o galo cantasse três vezes, viriato cossa tesourava o sono, pulava do leito e fazia jus à trinta minutos de leitura como ritual da sua vida. as cinco e meia, movia-se a passo resoluto para cedo chegar ao armazém, levantar os jornais ainda quentes, e por vezes com notícias quentíssimas de pregar os olhos de todo mundo, de até os que menos gostavam de leitura.
do armazém, viriato saía com mochila de um cinzento gasto às costas, inchado por uma pilha de jornais, e mais outros arregaçadas no peito. enquanto andava, cossa trauteava qualquer coisa, de consolo. naquela manhã o perímetro da cidade havia se alastrado, devia descrever a geometria da urbe pelos polos, de norte a sul, à pé. uma nova instituição havia celebrado um contrato novo com a distribuidora a que viriato trabalhava.


o calor estava intenso. após seis horas de caminho, viriato cossa parou na sombra da acácia, sentia uma ligeira tontura, a cabeça parecia rodopiar, em plena luz do dia parecia escurecer, mas não, o seu bucho ia de mal a pior, resmungava de fome. a própria terra parecia lhe sofrer alguma tremulação – uma bizarra sensação, decerto.
desde o raiar apenas duas chávenas de chá e um pão o suportava, todavia não muito bastante como se pode pensar. e finalmente, la tinha chegado. um engarrafamento de carros estacionados roubavam o passeio obrigando aos transeuntes a disputar o carpete do alcatrão com carros que por ai transitavam, viriato não era exceção, desenhava curvas entre os carros parados.
consultou no pulso as horas, do relógio que não tinha, parado defronte do prédio de três andares, que era o seu destino «star-vison» sussurrou esticando o olhar para o néon no segundo andar para confirmar o seu destino, deixou-se engolir pelo espiral lance das escadas, dobrou para a direita, bateu a porta de cristal e largou o último molho de jornais.

o sol envelhecia quando viriato cossa desfez-se do último molho de jornais. quando dali saiu, a menos passos de caminho, cossa sentia pedregulhos lhe ferir os calcanhares, não hesitou em espreitar, até ao fim da tarde, o ardina tinha os sapatos gastos e o calcanhar a espreita.

Por Alerto Bia

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