Primeiro Capítulo Aqui
Mal que o Manuel chegou ao país a ferida das dívidas voltou a sangrar; a sua chegada arrancou o penso rápido dessa ferida. O sangue das dívidas voltou a sujar os rodapés das televisões, as capas dos jornais, os panos das conversas em cafés, o bate-papo das senhoras do mercado que se atiram palavras, a distância, enquanto ajeitam a caneca de feijão na bacia, os www.com e tudo.
O Manuel foi ao Parlamento onde foi recebido por um grito de "Yommmmm" de um dos deputados. Sentou-se com todo estilo tal como o fazia na banca sul-africana perante os juízes. A "Boss" da Assembleia leu um longo discurso elogiando a justiça moçambicana por ter "arrancado" um criminoso nacional das mãos da comunidade internacional.
- Caros colegas, permitam-me louvar os serviços de justiça que fazem de tudo para colocar os sujeitos que mergulharam o bom nome do povo nessas dívidas que envergonham a liderança do nosso camarada Presidente. Ao colocar o Manuel nas grades nacionais a justiça deu uma aula de eficiência e eficácia à comunidade internacional. Caríssimos, a comunidade internacional queria linchar o nosso concidadão, ou seja, fazer a justiça pelas próprias mãos... Ele pode ser criminoso, mas é moçambicano.
Uma das bancadas virou um coro de vozes e embrulhou o discurso da "boss" em aplausos e ligou as vozes numa só e gritou: "Viva". O Manuel continuava sentado e pensando no tratamento que tinha na África do Sul: pensou nos sumos de maracujá que lhe adocicavam todas as páginas do processo, nos juízes sul-africanos que mal pronunciavam (Menuely, Mamul ou Mamamanul), nos seus advogados gordos que a cada dia perdiam as gorduras pela ginástica do processo, pensou no seu nome sendo dito em diversas línguas por diversos jornalistas ao seu redor e pensou nos seus pés seguindo o túnel milagroso que o levava à toca como mineiro descendo em pequenos elevadores ao inferno das minas de Joanesburgo. Pensou nas camisetas "Eu Não Pago Essas Dívidas" que lhe chegavam pelas cortinas semi-fechadas do tribunal.
- Caro moçambicano Manuel, pode fazer o uso da palavra, disse a "boss" com as bochechas cheias porque escondiam outras palavras "camarada, companheiro, membro do partido, deputado e ex-ministro".
- Quem são os outros que estiveram contigo nesse assalto aos cofres do pobre povo moçambicano? Sabemos que não estiveste sozinho. Disse um dos deputados conhecidos, na AR, por ter uma língua que se confunde com um rolo automático de informações.
- Caro Manuel, as dívidas foram tornadas ilegais pelo Conselho Constitucional; na sua perspetiva, como um dos envolvidos nesse processo que envergonha toda a democracia construida por nosso magno partido, que análise faz... Perguntou um outro deputado de camisa vermelha, de orelhas paradas e tensas como assas de um avião aterrando de emergência num pista onde um sujeito abana uma bandeirinha vermelha; a este deputado o tempo não se esgotou, acumulou-se.
- Ordem caríssimos colegas. Deixem o ... Manuel responder dentro das suas possibilidades civis. Não nos esqueçamos que a justiça moçambicana está ainda a tratar esse caso de uma forma séria e complexa.
As suas bochechas continuavam cheias de palavras que a "boss" não falava. O Manuel endireitou a veia fina do microfone, testou se funcionava com a ponta da unha como se fosse um padrinho chato querendo falar no corte de bolo do afilhado. O Manuel olhou a cadeira onde se sentava e viu as marcas das suas nádegas ainda vivas e abriu a boca pela primeira vez:
- Caros colegas...
Por Sérgio Raimundo - Poeta Militar
(Continua...)